Poderá José Sócrates ser Nietzscheano?

Para reabilitar a sua imagem pública, eis que depois do seu exílio em França o ex-primeiro ministro José Sócrates volta ao comentário político sob a indignação de muitos, especialmente daqueles que se dizem de direita. Ao ler o pequeno texto do André (Azevedo Alves) a sugerir que José Sócrates se transformou numa manipuladora personagem Nietzscheana que reavalia todos os valores, não pude deixar de pensar: poderá José Sócrates ser Nietzscheano em algum sentido?

À primeira vista, ao comparar a filosofia de Nietzsche com alguém como José Sócrates o veredicto é simples: praticamente tudo o que o autor alemão defende é contrário ao que José Sócrates representa. Senão vejamos: Nietzsche rejeita o igualitarismo moral e biológico, a moralidade de escravo (anti-excelência), o socialismo (que é moralidade de escravo sem Deus), o liberalismo (igualitarismo dos “cobardes”), o governo das massas (e.g. democracia) e o universalismo da moralidade. Tudo isto, podemos dizer, são valores que José Sócrates não só representa como fez deles a sua carreira.

Por outro lado, podemos argumentar que José Sócrates é apenas um produto do tempo em que vive, onde praticamente tudo o que Nietzsche rejeitava é hoje a norma (daí que o filósofo em causa tenha previsto a decadência niilista do ocidente). E é aqui que, no meu entender, a comparação do André se torna pertinente, pois apesar de Sócrates representar o oposto do que Nietzsche defendia, ele pode perfeitamente estar a usar o zeitgeist (espírito dos tempos) para atingir o poder, ou seja, a usar a célebre “vontade de poder” Nietzscheana. Por outras palavras, José Sócrates nega a realidade e tenta vender uma nova realidade sobre o que aconteceu durante o período em que foi primeiro ministro. Isto, claro, para se manter no poder político.  Assim, o real torna-se difuso, confuso e ambíguo, e o ex-primeiro ministro ganha um novo fôlego político através do relativizar da realidade. Se o conseguir, talvez seja um dos “homens superiores” Nietzscheanos. Será?

O homem superior, para Nietzsche, é aquele capaz de afirmar a vida e reavaliar (ou transmutar) os seus valores para sair da moralidade de rebanho e atingir os seus objectivos, sendo esses objectivos a superioridade e a excelência humana.

Aqui torna-se importante questionar se o que Sócrates está a reavaliar são os valores ou a realidade. Podemos admitir que ambos estão interligados, mas são conceitos distintos. Pessoalmente, parece-me que é a leitura da realidade que Sócrates está a tentar mudar e não tanto os valores. Ele continuará a representar a moralidade de escravo que Nietzsche abomina (i.e. o igualitarismo e a promoção da mediocridade de massas).

Podemos complicar a questão ao perguntarmos se Sócrates realmente acredita nesta moralidade que apregoa diariamente. Ao contrário dos mais fervorosos defensores do “egoísmo” da escolha racional, a resposta aqui, parece-me que é positiva. A esmagadora maioria dos políticos acredita ou acaba a acreditar no que diz e auto-motiva-se com esse motor psicológico. Talvez sofram do que Marx apelidou de “falsa consciência” e no fundo estejam mesmo só a procurar o seu interesse, mas na sua mente consideram que o seu auto-interesse está confluído com o do povo.  José Sócrates não será excepção.

Porém, Nietzsche sempre foi um pensador complexo e imprevisível  que surpreendia com a sua subtileza. Por exemplo, Nietzsche considerava Jesus um desses homens superiores que foi capaz de transmutar os seus valores (tal como os da sua época) e revolucionar criativamente o mundo à sua volta.  Mas, tal como nós já desconfiávamos, José Sócrates não é Jesus, e como tal, provavelmente não iria ser poupado pelo pensador alemão. Porquê?

As características que Nietzsche revelou como intrínsecas aos homens superiores são a capacidade para afirmar a sua vontade através da imposição da vontade (pela via bélica se for necessário) e a capacidade para criar construtivamente, ser original e virtuoso sem nunca ceder à moralidade que favorece a mediocridade e a vida fácil dos que não sabem ou conseguem mais. Em suma, o homem superior é um aristocrata no mais profundo sentido clássico do termo.

Certamente, este “homem Nietzscheano” precisa de saber adaptar-se ao contexto, coisa que Sócrates sempre fez maravilhosamente. Contudo, tal não se torna suficiente, pois a adaptação a um contexto medíocre para manutenção desse mesmo contexto é o oposto da superioridade; estando mais próximo do oportunismo. José Sócrates nunca revelou qualquer capacidade para criar ou alterar o trágico rumo europeísta, igualitário e de endividamento que herdou dos anteriores governos da 3ª República. Chegou a primeiro ministro e limitou-se a levar o país e o actual regime para a sua consequência lógica: a bancarrota moral e financeira. Não criou, não mudou, não inovou e não repensou, limitou-se a aproveitar o espírito dos tempos para viver em facilitismo político. Desta forma, o Über nunca esteve ao alcance deste homem.

9 pensamentos sobre “Poderá José Sócrates ser Nietzscheano?

  1. Um post de Chris Dillow que acho que vem mesmo a calhar para aqui:

    http://stumblingandmumbling.typepad.com/stumbling_and_mumbling/2008/04/last-man-standi.html

    “However, I fear the Nietzschean dichotomy between the last man and the “overman” misdescribes today’s world.”

    “Nietzsche thought that last men were an undifferentiated mass – “Everyone wants the same; everyone is the same” – whilst the overman strove to be different.”

    “But this is the exact opposite of what we see today. It’s the men who seek power and great wealth who are all the same – with their utilitarian morality and managerialist ideology – but it’s the men who retreat from worldly acclaim who are all different in their tastes, moralities and interests.”

    “And this is where Nietzsche is a lousy sociologist. He thought the overman could both create his own morality and achieve worldly power. But perhaps the two are incompatible. It‘s the men who seek power who are, in fact, slaves to contemporary mediocre morality. It’s the people who have renounced power and ambition who are free to pursue other, higher, moral goals.”

  2. “It’s the people who have renounced power and ambition who are free to pursue other, higher, moral goals”

    Isto revela uma incompreensão total do sentido que Nietzsche deu ao termo “poder”. Que estava muito longe de significar poder político. Era sim um poder mais abrangente que se manifesta nas pequenas coisas da vida tal como nas grandes.

  3. Rúben Lopes

    “Isto revela uma incompreensão total do sentido que Nietzsche deu ao termo “poder”. Que estava muito longe de significar poder político. Era sim um poder mais abrangente que se manifesta nas pequenas coisas da vida tal como nas grandes.”

    Correcto. Pessoas como José Sócrates são pessoas que Nietzsche desafiou a alterarem-se, em vez de serem simples ovelhas no rebanho do Comum. Sócrates foi uma das ovelhas que se impôs no topo, mas mantendo-se dentro do rebanho.

  4. Filipe, parece-me que Sócrates é de facto o Übermensch, não dos grandes homens, mas sim da mediocridade. Ele consegue convencer o vulgo, consegue deixar o pacóvio admirado e extasiado. Ele guiou e continuará a guiar o medíocre. Para o médio, Sócrates é o homem de “carisma”, que vingou e venceu. Veio de Vilar de Maçada, tornou-se Engenheiro e venceu na capital. O povo quer mais do que isto?

  5. tina

    Mas os portugueses não querem saber de Sócrates para nada! A conversa das pessoas na rua é que vão desligar a televisão quando ele falar. A blogoesfera é que não para de falar nele.

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