Suponhamos que está adquirido que aquilo a que chamamos austeridade (temos menos dinheiro, consumimos menos, poupamos mais – que remédio -, investimos menos, e por aí fora) não é aquilo que parece, mas é o que de facto é: vivíamos, em 2008, 10,1% acima do que produzíamos (o excesso da procura interna sobre o PIB), e agora não (o excesso reduziu-se a 0,5% do PIB). Esse excesso estava na origem do essencial do défice externo, que nesse ano foi de 11,4% do PIB. Terminou. Ou melhor: terminaram-no.
Se retirarmos ao que poupamos aquilo que investimos, obtemos o nosso saldo de financiamento (há mais uns detalhes, mas vamos esquecê-los). Se poupamos mais do que investimos temos capacidade de financiamento. Caso contrário, temos de nos endividar. O que poupamos, por seu turno, é a diferença entre o nosso rendimento e aquilo que consumimos.
É assim com todos: com o Estado, com as famílias, as empresas. E com os países como um todo. Devemos então perguntar-nos como conseguimos fazer a proeza de passar em conjunto de uma necessidade líquida de financiamento – de um défice externo – de 11,4% do PIB, para uma capacidade – um excedente – de 0,4%. Um ajustamento de 11,8 pontos percentuais do PIB. Não há memória. Foram as famílias que desataram a poupar mais, investir e consumir menos? As empresas? O Estado? É aí que entra este quadro.
Parece uma imensa borratada mas não é. Permite ver quem tinha e tem necessidade de se endividar (investe mais do que poupa… quando poupa, isto é, quando tem um rendimento superior ao que consome) e o que se passou desde o extremo de 2008 para cá.
Vemos que, em 2012, a capacidade de financiamento das famílias, num máximo desde 1999 (a série do INE só vai até aqui neste detalhe), de 6,4% do PIB, foi exactamente igual à necessidade de financiamento do Estado.
Que (não está lá o numerozinho; se enchesse o quadro de rótulos então é que a borratada era completa), as famílias aumentaram a sua capacidade de financiamento em 4,3 pontos percentuais do PIB. Foi esse o seu «contributo» para a anulação do défice externo. Tiveram uma enorme queda de rendimento, mas cortaram ainda mais no consumo, de modo que aumentaram a poupança e reduziram drasticamente o investimento. A receita é sempre a mesma, para quem não se pode endividar.
As empresas (sem a banca), mantendo ainda necessidades de financiamento (o investimento é superior à poupança), fizeram uma correcção ainda maior: 8,4 pontos percentuais do PIB. Aumentaram a poupança, que no seu caso é igual ao rendimento, e sabe-se onde foi parar o investimento. Temos aqui dado conta da situação, alarmados.
E o Estado? O Estado, se partirmos de 2008, o ano de crise, de separação das águas, o Estado é uma espécie de ovelha ronhosa do rebanho: é o único sector institucional que agrava as suas necessidades de financiamento: em 2,7 pontos percentuais do PIB. Sejamos justos: desde que o homem das narrativas emigrou, e depois do deboche financeiro (2009 e 2010) que nos levou ao tapete (também já vínhamos anémicos de trás, é verdade), o Estado está a corrigir um pouco. Mas feitas as contas do princípio deste fim de ciclo para o momento actual da crise, sabemos muito bem quem está em austeridade a sério: as famílias, as empresas, o sector privado. O Estado continua a ter quem o financie. Não poupa sequer, nunca poupou, quanto mais ter capacidade de financiamento.
Parece uma borratada, é uma borratada mas está muito bem explicada. Bravo!
Não poupa, nem podia poupar. Não é possível combater o defice publico e o defice externo em simultaneo. É uma espécie de quadratura do circulo. A poltica de redução de rendimento das familias (ou por aumento de impostos ou cortes salariais ou ambos), resultou numa redução dos impostos arrecadados, comprometendo a redução do defice fiscal. Mas teve impacto positivo nas contas externas por via da reduçaõ de importações. Por outro lado, o defice externo reduziu-se mais rapidamente devido ao elevado crescimento do desemprego, a tal chusma de gente com salario baixos que consumia sempre tudo o que auferia de salario. Sairam, pois, do sistema de compras cerca de 400 mil pessoas, ou cerca de 800 mil familias afectadas.
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Foi, no entanto, a pior estratégia disponivel, principalmente porque não se incentivou ou cativou de imediato o investimento estrangeiro para minorar os impactos e retomar os niveis de consumo a prazo por via da diminuição do desemprego. O governo devia ter baixado os impostos directos (IRS e principalmente o IRC) de imediato, logo que entrou com esta estratégia.
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Nunca devia ter combatido o defcie publico atraves de reduções salariais, que representam cerca de 18% do total da despesa. Devia ter cortado 15% no resto da despesa toda. E em simultaneo ter baixado impostos directos.
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Agora, está feito, não há nada a fazer. O caminho é o da servidão absoluta. Sair do EURO já está a ficar fora de tempo.
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Ricciardi
“Não poupa, nem podia poupar. Não é possível combater o defice publico e o defice externo em simultaneo.”
Há cada frase que deixam um tipo pasmado. Por esta brilhante ordem de ideias todos os anos em que a economia foi menor que..well… o ano em que estamos teria sido impossível combater os défices. Até parece que nos ultimos 50 anos não tivemos menos défices ou superavites…
Que raio se passa com a cabeça das pessoas?
«Nunca devia ter combatido o defcie publico atraves de reduções salariais, que representam cerca de 18% do total da despesa»
18%??!!!
Sim, 18% MC. Penso que agora até é menos.
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Caro lucky. A ideia subjacente é simples. Quando se tem defices publico elevados e defices externos elevados, combater o segundo implica necessáriamente relaxar no primeiro. A realidade comprova-o. As medidas de austeridade criam, per si, menor crescimento económico e portanto menor cobrança de impostos.. E isso era antecipavel e até certo ponto aceitavel para corrigir os desiquilibrios.
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Só não percebo é porque é que o governo quis intensificar a austeridade menosprezando o impacto da mesma nas contas publicas. Essa intensificação, via impostos, aniquiliou a consolidação das contas publicas para muiiittos anos. Porque gerou um desemprego massivo. Dir-se-à que a consolidação foi efectuada no defcie externo.
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Aparentemente sim. O que me preocupa é que me parece uma consolidação sem futuro. Já que não tratamos de substituir as principais rubricas de importações, nomeadamente a energia. Preocupa-me tambem o facto do investimento estrangeiro não ter melhorado.
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Em suma, quando se induz uma politica de ajustamento do defice externo com base exclusivamente na redução do poder de compra das familias, isso redunda numa contração do consumo de produção nacional tambem. A procura de bens importados diminui, mas a procura de bens nacionais tambem diminui atirando o desemprego, desnecessariamente para valores muito superiores ao desejado.
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É preciso que se compreenda uma coisa simples: a saber:
– O consumo de produção nacional é sempre igual à poupança.
Quer dizer, aquilo que o Lucky compra é poupança de alguém algures numa conta bancária. Se Gasta a sua massa a comprar chouriços de Bragança, o chouriceiro encaixa a receita. Em termos macro o se Gasto é Poupança daquele. O dinheiro que estava na sua conta passa para a conta dele.
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O mesmo não se verifica com cenisses importadas.
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E portanto matar a economia interna, a produção nacional, foi o grande erro deste governo. Existem formas melhores de controlar as importações sem danificar tanto a produção nacional.
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Ricciardi (Rb)
As crises de crédito combatem-se consumindo menos, a economia tem de voltar a uma dimensão menor, deixar de contar com o crédito e pagar o que existe.
Os impostos são errados porque punem quem cria, mas os cortes que teriam de ser implementados((ministérios fechados, função publica reduzida , pensões reduzidas) teriam o efeito de tirar a mesma quantidade de dinheiro*, a única diferença é que o crescimento teria mais potencial porque o incentivo para produzir para o mercado, para ficar rico, seria muito maior pois haveria menos punição a iniciativa. Haveria menos dinheiro na economia politica e mais na economia livre.
Como o Governo e o Regime é Soci@lista escolheu o caminho da punição da criação de riqueza.
A riqueza que Portugal teve na ultima década nunca existiu porque Portugal nunca produziu para tal quantidade de dinheiro, logo para voltarmos alguma vez a ter tal riqueza precisamos de produzir muito mais coisas que os outros tenham interesse nelas. Um aumento maior que os défices passados pois o estado e os portugueses já têm muito do que produzíamos.
Ou seja algo completamente novo que nunca existiu. É preciso outra economia.
Com a punição soci@lista dos impostos e a fuga de gente com valor para outras economias não é de esperar que haja algum crescimento.
*Digo a mesma para colocar as coisas no mesmo paralelo, os cortes e impostos actuais não são suficientes.
«As crises de crédito combatem-se consumindo menos…»
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As crises combatem-se consumindo menos importações e mais produção nacional.
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Rb
Um gráfico tão grande para explicar que foi o estado que passou a pagar meio milhão de subsidios de desemprego em vez das empresas pagarem meio milhão de salários…
Como é absolutamente óbvio, foi o défice externo que se corrigiu, até porque é essa a função do FMI: corrigir desequilibrios na Balança de Pagamentos. Compete-nos a nós corrigir os nossos problemas estruturais — o que, pela vontade da maioria dos portugueses, dificilmente serão corrigidos.
Não foi o FMI que corrigiu. Foram os mercados financeiros que corrigiram: fecharam-se. O FMI veio parcialmente substituí-los, cedendo fundos, sem os quais o Estado não se poderia continuar a financiar.
Jorge, a questão não é somente essa. A questão é que o MoU foi concebido com vista a equilibrar a BP (é esse um dos objectivos explícitos do FMI), coisa que conseguiu com sucesso. Se o objectivo fosse com efeito remodelar o Estado, a pressão teria sido muito maior nas políticas estruturais, coisa que não aconteceu.
Excelente post.
Obrigado, André.