O Adeus ao Liberalismo?

Nas últimas semanas, dois eventos profundamente relacionados ocorreram no continente europeu: A União Europeia ganhou o prémio Nobel da paz e um grupo de jovens franceses lançou uma declaração de guerra ao actual sistema político que se difundiu pela internet e chegou a todo o mundo.

Para mostrar o quão “inclusiva” e “tolerante” é, a comissão europeia tem em exposição uma campanha promocional. O lema é “Europe for All” (Europa para todos). Esta consiste de um poster onde se pode ver todas as religiões do mundo juntas numa grande estrela, assim como todas as ideologias. Bem, todas as ideologias não; apesar de a UE ser constantemente acusada de ser uma nova URSS em potência, o Marxismo não envergonha a eurocracia; muito pelo contrário, o comunismo até teve lugar de destaque ficando no topo da estrela; contudo, nenhum símbolo nacionalista/independentista teve direito a constar no poster (muito menos o do famigerado alemão dos anos 30/40).  É fácil de perceber porquê, o slogan “Europa para todos” é a antítese dos slogans nacionalistas que seleccionam como alvo do seu altruísmo um povo específico. “Portugal para os portugueses”, ou “País Basco para os bascos” ou, neste caso, “Europa para os europeus”, seria um clássico slogan nacionalista.

Porém, como eu escrevi há algum tempo, a União Europeia está empenhada em centralizar o poder através do enfraquecimento das nações, promovendo a inclusão dos povos do mundo inteiro na Europa de forma a quebrar as afiliações identitárias das nações. Desta forma, o que a UE quer veicular com este poster é simples: a Europa não é para europeus, não é para indivíduos com identidades tradicionalmente europeias; é sim um território para todos, sem identidade ancestral, atomizada e burocratizada. Por outras palavras, a Europa deixa de ser uma civilização e uma colecção de nações para passar a ser um sítio para onde simplesmente se vai.

O facto de a União Europeia aceitar o comunismo como legítimo mas rejeitar o nacionalismo advém da ideologia liberal universalista que persegue. O nacionalismo não é universalista, pois vê o seu povo como uma família e, como tal, prioritário em relação aos demais. Na sua essência, o comunismo é internacionalista (“trabalhadores do mundo unam-se” disse Marx) e desta forma encaixa na mundividência eurocrata. Ademais, assim como o comunismo, a União Europeia também considera que é preciso partir alguns “ovos” para atingir o seu ideal universal.

Devia ser óbvio para qualquer um: desde o pós guerra que a única ideologia vigente nas elites políticas ocidentais (liberais e progressivas) é o anti-tradicionalismo/nacionalismo. “Extrema”, “radical” são apenas alguns dos epítetos com que as posições mais tradicionalistas são brindadas pelo establishment. É isso que os une. Mais até, precisam desse fantasma para se legitimarem. E mais uma vez este poster mostra-o, excluindo-o das posições “aceitáveis”. Quem não ama a humanidade como todo mas sim os seus em particular não merece crédito político e talvez nem mereça andar por cá, parecem sugerir.

Este universalismo, claro, é a conclusão lógica da vitória do liberalismo saído da revolução francesa, onde a igualdade e a liberdade tornaram-se sinónimo de universalidade e da família do “Homem”. Os grupos tornaram-se “construções sociais” e o individualismo universal tornou-se soberano; é esta a lógica liberal subjacente, reforçada pelo construtivismo e pela revolução cultural gramsciana.

Contudo, na mesma altura em que a União Europeia ganha o Nobel da paz, um grupo de jovens franceses declara guerra contra a filosofia universalista da União Europeia e, especificamente, das elites francesas. O vídeo em si (que vale a pena ver antes de continuar a ler o resto deste texto) contém os preceitos filosóficos que almejam: a defesa da autoridade, da hierarquia, da tradição, do saber clássico, da ancestralidade genealógica, da tribo, do território, da nação, etc… revelando que não acreditam já no preceito liberal de que a humanidade é a nossa família e de que o mundo é a nossa vila.

Mais do que lançarem uma guerra às elites, esta “geração identitária” declarou guerra ao liberalismo, ou seja, declarou guerra ao paradigma liberal que vingou depois da revolução francesa. No fundo, declararam guerra à França e à influência que a França teve sobre o resto do mundo ocidental. Estão em guerra com os erros do passado.

Isto não devia surpreender ninguém. Quer vejamos a questão por uma perspectiva histórica de conflitos identitários no mundo, ou quer vejamos a questão por uma perspectiva evolutiva (inclusive fitness, selecção de grupo, etc…), conhecemos a tendência para os humanos formarem grupos identitários de forma a defenderem os seus.

A utopia liberal do individualismo soberano sempre foi precisamente isso… uma utopia. E os seus efeitos estão-se a fazer sentir cada vez mais à medida que, um pouco por todo o mundo ocidental, a insatisfação, a instabilidade a divisão social aumentam. Parafraseando Roger Scruton, toda a gente possui um sentimento de pertença, de querer pertencer; de sacrificar o eu pelo grupo.

Certamente que o liberalismo sofreu metamorfoses nos seus valores durante o tempo, passando de um liberalismo mais clássico onde a igualdade era formal e a liberdade era negativa (livre de constrangimentos de outros) para o liberalismo social que hoje domina e que é baseado na igualdade de resultados e na liberdade positiva (livre para atingir tudo o que se quer porque se tem meios para tal).

É ainda importante lembrar que o liberalismo começou como uma filosofia interna, destinado ao Homem europeu, como forma de garantir liberdades sociais internas (o próprio John Stuart Mill escreveu que outros povos teriam de ser tratados de formas distintas), mas rapidamente evoluiu para a sua conclusão lógica, isto é, para o individualismo universal.

É igualmente relevante apontar que o dito liberalismo económico não significa o abraçar dos valores liberais, tal como muitos países asiáticos mostram. Países como a Coreia do Sul, Japão, China, entre outros abraçaram economias de mercado mantendo visões tradicionalistas e preservacionistas de si mesmos.

Por fim, os tempos de crise em que vivemos e os 2 eventos mencionados neste texto apontam para uma crise do liberalismo universalista. Isto não tem de ser fatal, durante os últimos 200 anos o liberalismo passou por muitas crises e ainda está em vigor, estando até cada vez mais radical nos seus fundamentos. Sem surpresa, este precisa de se radicalizar para sobreviver (como mostra o poster da União Europeia). Mas pode também ser o canto do cisne e este poderá ser o princípio do paradigma pós-liberal.

12 pensamentos sobre “O Adeus ao Liberalismo?

  1. pedro

    Existem alguns pontos não observados nesta argumentação. Só apenas um, porque não tenho muito tempo agora. O individualismo leva à criação de grupos, não à existência de um grupo gigante de indivíduos. Mas leva à criação de grupos cada vez mais desligados do seu carácter geográfico e ou social. Exemplo: Internet. Não existe plataforma onde o sentimento de grupo e de pertença se faça mais sentir do que aqui (este blogue é um exemplo disso), seguindo um conceito de liberalismo universal (não sei muito o bem o que é isto, apenas o levei à letra, talvez inequivocamente). Basta sair à noite para ver a criação de cada vez mais grupos, de cada vez mais tribos.

    Aqueles que tentam forçar a identidade nas pessoas, cometem os mesmos erros do que aqueles que a tentam apagar. Os grupos devem ser sistemas espontaneos e organicos ligados à vida, mais do que a visões políticas.

  2. JS

    Sim, parabéns FF.

    Quanto ao poster. Que um inculto “artista” funcionário -à boa maneira da URSS- tenha desenhado semelhante mistura de símbolos religiosos e de símbolos políticos … tudo é possível.

    Mas que as figuras responsáveis da “Europa” tenham aprovado ! e selecionado ! semelhante imagem, diz imenso sobre a personalidade, cultura e o que lhes vai pela cabeça, de quem – à força- quer construir aquilo que teimam chamar “Europa !???”.

    É obrigatório votar/eleger semelhantes criaturas?.

  3. Against All Odds
    Vivemos em Portugal e na Europa um período de grande instabilidade, incerteza e conflito quanto ao rumo a seguir. O endividamento irresponsável que sustentou as políticas e os governos nos ultimos doze anos, conduziu-nos a este ponto e apresenta agora a sua enorme factura. Infelizmente, embora o desmando e desgoverno tenha sido de alguns, nesta democracia imperfeita e ineficiente,a factura está a ser paga por (quase) todos. Digo quase todos porque infelizmente o governo tem sido totalmente incapaz em comunicar:
    a) o valor e as condições de pagamento da factura,
    b) a distribuição por quem paga ou não paga, porquê e até quando,
    c) as alternativas que possam existir.

    O que, a juntar à:
    a) impunidade de quem tão mal geriu os dinheiros públicos durante tantos anos e com tantos casos e indicios de existência de fraude e/ou corrupção,
    b) manutenção de sinais exteriores de gastos excessivos de quem exerce ou exerceu cargos publicos, quando o “povo aperta o cinto” ,

    conduz naturalmente a que o povo se divorcie deste desígnio e se revolte perante os sacrifícios que parecem excessivos, injustos, desiguais, impraticáveis.

    Neste enquadramento, seria de esperar que toda a classe política tivesse o minimo de sentido de responsabilidade e de senso, para que neste periodo tão dificil e tão duro, contribuisse para que todos possamos sair desta crise o melhor e o mais depressa possivel. Mas não, a nossa classe política parece ainda não ter entendido que aos olhos de uma boa parte do povo todos foram responsáveis por termos chegado aonde chegamos: por acção directa, por conivência ou por inacção.

    Construímos um país que produz menos do que o que gasta, e que por isso para poder continuar a viver precisa de empréstimos, que só chegam mediante as condições de pagamento impostas pelos credores.

    O modelo para cumprimento dessas condições que nos foram impostas, tem vindo a ser apresentado pelo governo, com as conhecidas reacções negativas de todos os quadrantes políticos a começar pelos “ex-qualquer coisa” dos partidos do governo. Mas se a discordância com a apresentação de alternativas concretas seria positiva, a discordância por tática política numa altura destas é da maior das irresponsabilidades que a História saberá registar. Como poderá o povo sem os dados e a informação necessárias tomar a melhor posição perante estas circunstâncias, se oposição , ex-governantes, politicos, comentadores, jornalistas, parecem incapazes de o fazer, com a apresentação de alternativas concretas e consistentes que permitam a equação perfeita e impossivel que todos parecem prometer: cumprir as metas dos credores, baixando a despesa do Estado, reduzindo a receita de impostos, e promovendo o crescimento e o emprego.

    Estaremos longe de podermos estar convencidos de que o orçamento proposto é ” a unica via possivel”, quer pela total falta de explicações por parte de quem as deveria ter dado oportunamente, quer pelas inconsistências e criticas mais assertivas que algumas individualidades ou instituições mais crediveis têm objectivamente apresentado.

    Restam-nos duas esperanças cada vez mais remotas e improváveis:
    a) Que deputados, governantes, e demais agentes das forças dominantes deste país dêm sinais de que o senso e o bem comum se irão sobrepor aos egos e interesses próprios e corporativos.
    b) Que a Alemanha de uma vez por todas seja capaz de assumir o leme da Europa como Europeista convicta e assumida.

    Esperanças possiveis, mesmo “against all odds”.

  4. Luís Vilela

    Filipe,
    Partilho o mesmo incómodo relativamente ao cartaz e não acrescento mais.
    No entanto, não estará o artigo a conceder um estatuto ambíguo ao conceito “liberal”? Mesmo na sua dimensão mais filosófica, o conceito “liberal” – aliado às referências a autores como Mill – não é isenta de riscos. Não devemos assumir que o utilitarismo é expressão estrita do liberalismo. Julgo que há uma confusão importante em torno do que significa o termo “liberal”. Alguém consegue aceitar, como é assumido no artigo, que “as elites políticas ocidentais” sejam liberais? E progressistas simultaneamente?
    É que analisando a história, não vejo que estas elites tenham sido (ou sejam) liberais.
    Julgo que a este respeito o trabalho de resgate, digamos assim, que é feito por Rothbard (e outros) do conceito de “liberal” e a sua radicação na tradição tomista (portanto europeia) dos direitos naturais é extremamente útil e necessário.
    Só mais uma dúvida: mas a que individualismo universal se está a referir no texto?
    Saudações,
    Luís Vilela.

  5. Paulo Pereira

    A criação deste Euro é a prova mais que provada do estatismo da esquerda e da direita europeias.

    Foi o maior golpe contra o liberalismo, muito mais que qualquer outra lei ou tratado,

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  8. Guliherme de Souza-Girao

    Nao me parece que o desenho em causa tenha algo a ver com o liberalismo – velho ou neo-liberalismo. Acho uma perda de tempo comentar, por vezes tao longamente, sobre o referido poster com bem ou mal elaborados argumentos politico-filosoficos. Juntar a foice e o martelo, a estrela de David, o crescente e outos simbolos, com a Cruz ou e manifestamente mal intencionado ou um total disparate de uma absurda dimensao!!! E assim nada tem a ver, repito com o liberalismo, sem o qual talvez estivessemos a viver ainda nos despotismos de origem divina, sem ofensa para DEUS. Podera, quando muito, querer mencionar um principio ecumenico, mas a inclusao de um certo simbolo, que significou um despotismo avassalor e triturante, e de um gosto que destroi a simbologia ecumenica para levar a desconfiar de tratar-se “de uma associacao pouco recomendavel”.

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