Há dias, alguns cineastas portugueses protestaram na escadaria do Parlamento e enviaram um ultimato ao governo, exigindo meios financeiros para continuarem a trabalhar. Ao que parece o cinema português precisa do dinheiro dos contribuintes para não morrer. Se para qualquer pessoa sensata um cinema sem público já está morto, para estes ‘cineastas’ não é assim. Para eles, a existência de pessoas interessadas em ver os seus filmes, em apreciar o seu esforço e compreender o seu trabalho, não é importante. Pelo contrário: de acordo com Miguel Gomes, realizador e um dos dinamizadores do protesto, o financiamento do Estado será essencial para que possam criar em total liberdade. Novamente, e com uma afirmação que contraria a experiência histórica vivida por qualquer pessoa que tenha dependido do Estado, seria de esperar o desejo de outra solução. Que nos dissessem que ficar dependente do poder político fosse tudo menos ser livre. Que aguardar que burocratas decidam, conforme a sua livre vontade, sujeita que está a pressões políticas pouco dadas a sensibilidades culturais, da capacidade criativa de alguém, não fosse uma liberdade total. Que se sentissem livres por terem conseguido cativar e cultivar um público e não serem do agrado do poder. Que fossem contrapoder. Que conquistassem um público que se esforçasse por os compreender ao mesmo tempo que fosse exigente para com eles. Que os obrigassem a inovar e a não estarem à porta de um gabinete ministerial a pedir esmola. Ao que parece os nossos cineastas têm outra opinião.
Surgiu a ideia, vai-se lá saber de onde, que um, como agora se denomina, agente cultural, está acima dos meros mortais. Não por ser alguém que cria, porque um cientista num laboratório e um investigador numa universidade também o fazem, mas por ser alguém que está acima das preocupações humanas mais comuns. Ser alguém que se entrega a algo abstracto, que não se pode medir e avaliar. Uma pessoa e uma obra fora do alcance do nosso discernimento e da nossa crítica. Alguém que trabalha não para um público, mas para si mesmo. Para a sua última satisfação. Quando um cientista descobre algo, um arquitecto desenha um projecto com formas revolucionárias, um empresário inventa uma nova forma de fazer negócio e criar emprego, ele sujeita-se à resposta do público e à adesão dos consumidores. E quando esta é positiva, o trabalho que foi feito, as horas, dias e anos para atingir aquele ponto sublime que é a descoberta ou a criação de algo, ganha sentido. Há um diálogo entre quem faz e quem recebe. Há reciprocidade. Um benefício mútuo que se perde quando os fundos para trabalhar são dados sem retorno, nem objectivo concreto.
De acordo com um texto de Fernando Vendrell, publicado no blogue da Associação Portuguesa de Realizadores, o não financiamento do cinema pelo governo põem em causa “a capacidade dos portugueses (…) sonharem, se confrontarem com os seus fantasmas, fruindo na sua vida uma experiência mais rica e intensa, através das suas emoções e da projecção do seu imaginário”. Mas como é que tal é possível se não há dialogo com o público? Se quem faz filmes não se preocupa com quem os possa ver? Como é que pretendem devolver a capacidade de sonhar ao mesmo tempo que querem estar livres do que pensam e sentem quem lhes paga? Como é que pretendem pensar se recebem cheques em branco? Por que motivo chamam de cultura, algo que ignora as pessoas, as críticas e a realidade? Por que é que se acham detentores da verdade quando vivem uma abstracção?
Excelente post André.
O expoente máximo deste modo de ver o cinema (e da falta de respeito sobre os contribuintes “incultos”) chamou-se “Branca de Neve” apresentado no ano 2000.
Da autoria de João César Monteiro (ao que parece) tratou-se de um “filme” que por qualquer motivo técnico viu serem destruídas parte das filmagens. Para contornar o problema sem perder tempo ou investir mais dinheiro, o realizador optou por apresentar um filme quase totalmente sem imagens, com o ecran preto, numa ousadia apenas “compreendida” pelos circulos intelectuais do “milieu”.
Custou ao contribuinte 130.000 contos, ao que se somaram mais 26.000 contos, via RTP.
Já agora, para quem ainda não viu.
Senhoras e Senhores, o fantástico filme Branca de Neve: http://youtu.be/OXqclEiV8Ho
“estarem à porta de um gabinete ministerial a pedir esmola”
O autor do texto parece preferir a alternativa:
“estarem à porta de um investidor a pedir esmola”…
Raio, o investidor pede retorno pelo dinheiro que deu, o estado não.
Eu prefiro. O investidor dá a “esmola” do seu próprio bolso. O ministro dá a “esmola” do meu.
Se é para fazer caridade que não o façam à custa de terceiros que não são tidos nem achados.
O tal “investidor” até pode nem estar à espera de retorno. Pode ser um acto de puro patrocínio. Isso é lá com ele.
Espere aí, por essa ordem de razão, a investigação científica feita com apoios públicos também deve acabar. Aliás, como qualquer outra actividade financiada pelo Estado. O que, de uma perspectiva liberal, é defensável, mas tem de se entender as consequências: o desaparecimento dessas mesmas actividades. Isto é tanto mais verdadeiro no cinema, que envolve muita gente e muitos custos (às vezes, parece que só se pensa nos realizadores, mas há muitas pessoas – montadores, técnicos de som, directores de fotografia, assistentes de realização, maquilhadores, etc, etc., etc. – a trabalhar nos filmes).
Fala-se do público e não sei quê, mas só alguém muito desatento pode acreditar que os filmes portugueses com mais público não precisam de apoios do Estado. Se o impasse no ICA continuar (repare-se que não se pede mais dinheiro, mas, sim, que este organismo volte a ter meios para funcionar), os únicos filmes que se farão, à excepção de uma (e não muito mais do que isso) “mega-produção” à portuguesa que faça 300.000 espectadores (com os custos de promoção, nem essa provavelmente dará lucro), serão aqueles realizados por amor à camisola, ou seja, em que todos os intervenientes são mal pagos (ou nem são pagos), o que é óptimo para toda a gente, suponho.
Esse mito de que o cinema português (ou outro qualquer, que não o americano ou o indiano) continuará a existir sem apoios do Estado é um isso mesmo, um mito. É engraçado como esta questão mal se coloca em países vistos como metas de desenvolvimento em Portugal, casos da Alemanha ou da França, para não falar nos países nórdicos, em que o investimento na cultura, em proporção, é e sempre foi incrivelmente maior do que cá. Caso o Estado português deixe de apoiar o cinema, ficaremos ao nível da Hungria. Um orgulho, portanto.
Eu sempre suspeitei que havia aqui uma questão de exaltação nacionalista.
O cidadão Vendrell e outros como ele, que se exprimem na linguagem imperativa das “exigências”, sejam fazedores de fitas ou de outra coisa qualquer, não passam de uns salta-pocinhas.
Saltam de uma declaração de vontade subjectiva (“eu quero”) para a exigência de que outros satisfaçam as suas vontades (“alguém tem de me possibilitar o que eu quero”) e daí saltam para ainda mais longe –para a consagração das necessidades sentidas como deveres legais (“eu tenho o direito”), impondo obrigações injustificadas e injustificáveis a quem não está, nem deseja estar, envolvido.
Como resultado, a vontade subjectiva de alguns é satisfeita por recurso ao roubo de todos. O resto é um embrulho de má ideologia, feita a partir dos restos de ainda pior filosofia, prostituindo pelo caminho o Estado, a cultura e o que mais lhes aprouver.
A generalidade dos portugueses já não têm qualquer paciência para aturar esta cambada de sans-culottes mentais e as suas constantes tentativas de furto por “punho erguido” ou por “ultimato”. O que parece continuar a faltar é a representação política condicente para os mandar ganhar a vida de forma honesta.
No meio de tanta asneira, seria difícil algo destacar-se, mas isso acontece: “Por que motivo chamam de cultura, algo que ignora as pessoas, as críticas e a realidade?” A sério? É mesmo isso? Os cineastas portuguese andam há quase cem anos a registar o país onde vivem, a filmar a realidade em que vivem, a chamar as pessoas para os seus filmes. Desde o “Douro-Fauna Fluvial” até ao “Aquele Querido Mês de Agosto”, passando pelos filmes neo-realistas dos anos 50, d’Os Verdes Anos, dos documentários etnográficos de António Reis e Margarida Cordeiro aos documentários mais recentes de Manuel Mozos (“Ruínas”) ou Susana Sousa Dias, etc., etc. O Cinema português, seja na sua vertente documental ou ficcional, não tem feito outra coisa senão não ignorar as pessoas nem a realidade. Não há meio mais fiel de retratar um país do que o cinema. Nenhum historiador conseguirá mostrar, com o auxílio de palavras ou números, o que era a ruralidade transmontana filmada por Reis/Cordeiro. O cinema português mostrou a ditadura, mostrou a guerra colonial, mostrou as mudanças socias que foram acontecendo ao longo de um século. Os filmes do Pedro Costa mostram a realidade das comunidades imigrantes, assim como como o documentário de Sérgio Treffaut.
Enfim, já percebi que não vale a pena. Para os os Insurgentes, será indiferente se isto tudo se perder – porque não tenhamos dúvidas de que se vai perder, sem o ICA funcionar.
Não seja por isso. Contamos com o Sérgio Lavos e outros amantes da cultura para manter bem vivo o cinema português.
Eh pá, Miguel, grande resposta, com essa fiquei desarmado e reduzido à minha insignificância. Fogo, agora é que fiquei convencido da superioridade da vossa crença (crença porque não há qualquer base empírica para a teoria) sociedade completamente livre do Estado. Vou passar a vir mais vezes aqui à vossa Igreja Universal do Reino dos Mercados.
Numa coisa estou de acordo com os “defensores do cinema”, não entendo esta fúria toda a atacar gastos do Estado que representam uma fatia tão pequena do orçamento quando há aí tanto dinheiro mal gasto. Eu sei que me vão responder que também são contra o resto dos gastos, mas de uma forma tão activista como esta, que é de todo desproporcional ao peso que tem no OE, não me parece…
Caro Sérgio Lavos,
Se calhar o público português não está interessado no registo que os cineastas fazem do país.
“é que fiquei convencido da superioridade da vossa crença (crença porque não há qualquer base empírica para a teoria) ”
Qual teoria? A que não quero que vivam à minha custa?
Mas volte sempre. Não se acanhe.
André, não destruas a crença do Sérgio Lavos.
“Eu sei que me vão responder que também são contra o resto dos gastos, mas de uma forma tão activista como esta, que é de todo desproporcional ao peso que tem no OE, não me parece…”
Um “rentista” de cada vez. E eu prometo tratar todos por igual.
André
Análise muito interessante de dois termos que se anulam mutuamente: autonomia criativa – dependência estatal.
“… o não financiamento do cinema pelo governo põem em causa “a capacidade dos portugueses (…) sonharem, se confrontarem com os seus fantasmas,…”: Basta ligar a televisão à hora dos telejornais nacionais para os portugueses enfrentarem os seus “fantasmas colectivos”.
“Por que motivo chamam de cultura, algo que ignora as pessoas, as críticas e a realidade?” Ora aqui está um dos pontos-chave da “cultura nacional”.
Ana
É isso mesmo Miguel, dá nesses rentistas. A seguir sugiro-lhe um grupo que a mim também me irrita à brava: os deficientes. Têm problemas? azar. Eu não tenho de estar a sustentar ninguém com os meus impostos.
Você é que sabe. O dinheiro é seu.
20, tendo em conta o contexto da discussão parece-me que está a sugerir uma comparação no mínimo estranha…
Estranha porquê? Por acaso não acho. Não se aplicaria o mesmíssimo princípio de base?
Mas alguém duvida de que para os Insurgentes não deveria haver Segurança Social sustentada pelo Estado, mas sim privada, e portanto os deficientes teria de se desenrascar com os seus problemas? O Estado fora da economia e da vida das pessoas! Até ao último homem em pé. Ou de cadeira de rodas.
Sérgio Lavos, uma dúvida sobre o seu último comentário: o dia não está a correr bem por algum motivo e saíu assim ou é algo estruturado?
“O Estado fora da economia e da vida das pessoas!”
Apoiado!
Obrigado pela preocupação, mas está tudo bem, o Insurgente consegue estruturar na perfeição o meu pensamento. A não ser que se esteja a referir ao “teria” em vez de “teriam”…
Miguel: nem eu esperaria outra coisa que não fosse apoio ao que escrevi sobre a Segurança Social…
Vejo que nos começamos a entender.
Agora tenho que ir acabar o jantar das minhas filhas porque não tenho subsidios para contratar uma cozinheira particular.
O problema dos “artistas” não é com a liberdade criativa, a qualidade, o cinema português – O que eles temem acima de tudo é a avaliação.
Eles sabem que enquanto o dinheiro vier do Estado estão ao abrigo de qualquer forma de avaliação do seu trabalho.
Não têm que prestar contas nem do dinheiro nem do que produzem.
È esta a liberdade que não querem perder.
“O Cinema português, seja na sua vertente documental ou ficcional, não tem feito outra coisa senão não ignorar as pessoas nem a realidade.”
Assim fala o Aristocrata a tentar desculpar-se.
O cinema português é um zombie ilegítimo dos políticos que precisam de uns artistas em campanhas eleitorais e nas páginas da chamada “cultura” dos jornais portugueses, odeiam os portugueses a não ser quando fingem que gostam deles para avançar uma qualquer política para mais Estado.
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