O meu artigo para o jornal i deste fim de semana.
A Vitória dos Buddenbrooks
A Alemanha que venceu a Europa não foi a das armas, mas a dos comerciantes que Thomas Mann descreveu no seu livro Os Buddenbrooks.
Se ainda não o fez, o leitor devia ler Anna Karenina de Lev Tolstoi (Relógio d’Água), e Os Buddenbrooks de Thomas Mann (D. Quixote). Os dois romances retratam bem a vida, em pleno século XIX, de duas realidades europeias distintas. A Rússia e a cidade livre de Lubeck, esta antes e após a sua integração no Império Alemão em 1871. O que encontramos nestes romances, a vida das personagens neles descritas, os seus sonhos, ambições, desejos, frustrações e sucessos, medos, angustias, derrotas e vitórias, as casas onde vivem, o modo como lidam com os seus iguais, com os criados e os camponeses, dizem muito do que foram uns e outros. Bastante do que é, hoje ainda, um país como a Rússia e outro, como a Alemanha.
Enquanto no romance de Mann os Buddenbrooks detinham um negócio de importação e exportação que procuravam passar aos seus descendentes, permitindo-lhes a continuação de uma fonte de rendimento que os sustentasse e os fizesse ser uma mais valia na cidade onde viviam, na obra de Tolstoi a realidade é outra. Neste, ou são altos funcionários do Estado, ou nobres de antiga linhagem, os que constituem a elite política e intelectual. Apenas um, Koysta Levin, representa a falta que Tolstói tanto lamentava entre as elites russas: o gosto pelo trabalho com vista a ajudar os mais desfavorecidos, fazendo o que é justo. O que faltou em Tolstoi, como aliás em Dostoiévski, foi nunca ter conseguido juntar o gosto pelo lucro e pela realização pessoal, à solidariedade. Reconhecer a necessidade de ajudar os outros como sendo o resultado inato do sucesso, fruto desse mesmo trabalho. Para Tolstoi, um benemérito tinha de ser um santo. Um místico. Um homem sem falhas. Talvez por isso, o homem bom que era Levin fosse agricultor, mas nunca um comerciante. Já os Buddenbrooks são demasiado homens para serem santos. Veja-se o exemplo de Johann Buddenbrook que apenas porque quer levar o sogro para casa, conversa com os revoltosos de 1848 e os convence a desmobilizar. Ajuda-os. Resolve o problema que afecta a cidade, não por ser um super-homem, mas como homem simples que é e que procura o bem estar da sua família.
O tempo foi aumentando esta confusão entre benemérito e santo. Só quem se supera, consegue visar o lucro ao mesmo tempo que procura o bem. Por termos caído nessa crença do homem perfeito, grandioso e inexistente, substituímos os homens normais por instituições longínquas. A crise de hoje, é também de confiança. De suspeita perante Merkel e Sarkozy que não se portam como esperamos se comportem os líderes: de modo magnânimo e capazes de resolver, de um dia para o outro, todos os problemas, quanto mais não seja pela sua simples presença. E também porque deixámos de acreditar que com esforço, pessoas normais conseguem grande feitos, fomos vivendo numa sociedade como a descrita por Tolstoi, na qual as elites nada produzem, vivendo tranquilo quem alinha com o Estado e se encosta a ele. Tal qual os endinheirados em Anna Karenina que pouco mais fazem que não seja preencher papelada e gerir comissões. Elites que discriminam os fracos pelas suas origens, ao contrário dos comerciantes de Lubeck que apenas desprezam quem não trabalha. São elites como as descritas por Tolstoi, que alinharam com os erros que nos conduziram até aqui, as que estão hoje a ser postas em causa.
A linhagem dos Buddenbrooks acaba por desaparecer, mas a sua ética, o seu espírito, que era o espírito capitalista daquelas cidades livres e mercantis, que Max Weber tão bem explicou, continuou noutras famílias. Continua hoje, por muito que nos doa admiti-lo, nas economias nórdicas e holandesa que pouco sofrem com a crise mundial que vivemos. O trabalho e o esforço compensam. O lema dos Buddenbrooks, “Nunca fazer negócios durante o dia que te tirem o sono durante a noite”, retrata como o valor dado ao trabalho, obriga à honestidade e como dessa honestidade, surge a consciência social. Como vamos ter de mudar e estar mais atentos aos Buddenbrooks.
Poste interessante !
Backgrounds historicos ou ideologias ?
Mentalidades das elites ou colectivas ?
Bom post. Permite esclarecedores paralelos.
Com o tipo de “exemplo que vem de cima”, por cá, o resultado está à vista.
Como alterar esta tão bem instalada (no pun intended) cultura?.
André
Análise muito interessante, até pelo facto de não ser por acaso que a Rússia de Tolstoi foi o berço de uma fórmula comunista e de toda uma cultura estatal. Mas não esquecer que a Alemanha foi o berço de uma outra fórmula socialista totalitária.
Queiramos ou não aceitá-lo, não houve lealdade desde o início nestes acordos da integração europeia, como descreve na cultura dos Buddenbrook. Seria óptimo ver essa cultura florescer actualmente na Europa, mas ainda não a vemos.
E queiramos ou não aceitá-lo as actuais lideranças europeias estão muito aquém desses “homens simples” realistas e sensatos dispostos a ajudar a comunidade. Temos actores de terceira categoria a representar um papel com bastante arrogância e um insuportável paternalismo.
Ana
Isto é ideológicamente miserável. É simplesmente a rendição ao protestantismo adorador de Mammon.
Chamem a Zazie, o Dragão ou o Pedro Arroja para vos explicar a bojarda que postaram.
Eu não tenho “ética de trabalho” que chegue.
Obrigado pelos comentários de todos.
Ana, os Buddenbrooks tinham defeitos. Essa é precisamente a sua maior vantagem: o serem reais. Melhor, possíveis. E também eram arrogantes e paternalistas. Não suportavam os alemães do sul, pelos mesmos motivos que hoje os alemães e holandeses nos desprezam. Talvez desprezo seja uma palavra demasiado forte, mas ela serve aqui para percebermos o contexto.