Esta discussão, muito interessante, sobre a ADSE, permitiu-me confirmar algo que já desde longa data a doutrina apresenta e a prática me haviam mostrado à saciedade.
Desde logo, que a maioria das pessoas, mesmo as supostamente mais informadas, está ideologicamente intoxicada na discussão de temas como este, raciocinando na ausência de elementos factuais: este é o terreno fértil para a demagogia dos políticos e para a manutenção de soluções bizarras no campo das políticas públicas, e um dos grandes obstáculos a que se promova qualquer mudança significativa em Portugal. É chocante ver o nível de erro nos pressupostos e a dificuldade em aceitar evidências, com argumentos no estilo “a minha colega da frente que manda umas facturas diz-me x“, ou, “a ADSE tem menos fraude que o SNS” (porque dá jeito dizer isso, ainda que não haja qualquer base para fazer uma afirmação destas). Estes, entre outros argumentos, apenas servem para provocar ruído, e não ajudam a qualquer esclarecimento.
Por exemplo, este último raciocínio apresentado abaixo, algures numa caixa de comentários, labora no erro, desde logo, que eu sou a favor de uma solução tipo SNS – o que não é verdade – e ignora que o nível de fraude na ADSE é comprovadamente chocante, porque o sistema incentiva a fraude, ao contrário do SNS, que não incentiva a fraude (no sentido estrito da palavra fraude), mas a corrupção e a ineficiência operativa. Cada uma das soluções é má, ADSE e SNS, mas por razões distintas. A forma como a discussão se desenrola dá origem a falsas barricadas – quem é “contra a ADSE”, é “a favor do SNS” – branqueando um sistema péssimo para a liberdade – a ADSE – só porque não se gosta de um outro sistema péssimo – o SNS. Resultado? Vermos gente liberal a defender bosta de boi, temperada com pimentos e molho de caril, como algo que até pode ser muito bom, só porque não gosta de merda de cão com temperos menos apurados.
Siga a Marinha. Nesta lógica dos incentivos, é impressionante a dificuldade que muita gente tem em perceber que um sistema com os incentivos errados não deve ser defendido por quem advoga os valores liberais, ainda que dinamize a economia privada. Os privados, com os incentivos errados, produzem resultados económicos que são inimigos da liberdade e da propriedade: sim, porque a ADSE dinamiza a economia privada, e a “liberdade de escolha”, à custa sobretudo dos impostos de todos. E sim, os impostos são limitações à liberdade individual, e ataques legais ao direito de propriedade. Ou não?
Por isso, quando todos pagam – e não é pouco (2.000 milhões de euros) – para que alguns – 1,3 milhões de pessoas – tenham um benefício (cada beneficiário recebe em média dos impostos dos portugueses, 1.500 euros), que é negado, quer a pessoas que se encontram em igualdade de circunstâncias (ou seja, os funcionários públicos que exercem as mesmas funções, mas com um vínculo laboral distinto), quer ao resto da população – a quem o Estado oferece generosamente um SNS que não quer para os seus funcionários mais dilectos; quando este sistema está amplamente dominado por ineficiências e maus hábitos de prescrição, que favorecem o desperdício e a fraude em larga escala; quando, finalmente, os benefícios sem equidade, o desperdício e a fraude são suportados por gente comum como eu, numa limitação da nossa liberdade individual e dos nossos direitos de propriedade; então a minha oposição é clara e sem rodriguinhos.
Eu sou intransigente na defesa da integridade dos direitos de propriedade, da liberdade individual, da igualdade de oportunidades, da (verdadeira) economia de mercado e da iniciativa privada, mas não contem comigo para içar bandeiras a favor da rapinagem e de economias assentes em esquemas, soluções milagrosas e fantásticas porque suportadas pelo dinheiro que é de todos.
“Por isso, quando todos pagam – e não é pouco (2.000 milhões de euros) – para que alguns – 1,3 milhões de pessoas – tenham um benefício (cada beneficiário recebe em média dos impostos dos portugueses, 1.500 euros)”
– o sistema tem benefícios a mais? pode ser, podem ser cortados alguns. Como qualquer seguradora que vende seguros de saúde tem a cada momento de acertar no mix correcto de prémio versus serviços que inclui e os que deixa de fora.
– mas subsiste se fica mais caro o aumento capacidade do SNS e/ou reivindicações monetárias substitutivas do rendimento perdido.
Basicamente mais vale olhar para o custo total de salários dos funcionários públicos mais o custo da ADSE, tal como uma empresa oferece salário mais seguros de saúde no pacote contratual.
RAF,
No caso das fraudes não interessa se um sistema tem menos ou mais fraudes mas sim em que sistema sai mais barato controlar os custos das fraudes minimizando simultaneamente não só os custos das fraudes mas também os custos da burocracia para controlar fraudes, ineficiências nas prestações, corrupção e baixa procutividade. Acusar a ADSE de ter fraudes e depois defender que no SNS as fraudes não existem porque não lhes chamamos fraude mas corrupção é um bocado absurdo.
Outra questão importante é que a ADSE é uma componente do salário dos funcionários públicos sendo por isso absurso compará-la com o SNS para identificar injustiças. Nada impede uma empresa privada de incluir seguros de saúde no pacote remunerativo, e o mesmo deve aplicar-se ao Estado. Para identificar injustiças, o que se tem que comparar é o pacote remunerativo global dos privados com o do sector público. Se o Estado paga a mais, deve cortar. Mas tanto pode cortar no salário como na ADSE como noutra componente qualquer do pacote global.
JM, sim, acho que também foi isso que quis dizer no meu comentário acima.
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