Wikileaks: um teste ao jornalismo cívico

Até agora, o debate entre os prós e contras da wikileaks nas redes sociais e blogosfera resume-se aos prós e contras da bondade da transparência de organizações públicas.

Caricaturando, do lado dos contras há os que defendem que a política não deve ser o domínio dos cidadãos (logo que a wikileaks é ilegítima), e aqueles que não percebem sequer que a questão é política e perguntam porque é que a wikileaks não revela documentos sobre direitos humanos, etc (logo que a wikileaks não é moral). Do lado dos prós estão aqueles que defendem que a transparência é em si benéfica.

Enquanto o debate se centrar num debate teórico, a wikileaks será um projecto falhado. A transparência é por si só inútil se o conteúdo daquilo que é publicado não for moralmente interpretado pelos visados: os cidadãos.

As próprias instituições políticas (ou as pessoas que fazem directa ou indirectamente parte delas, ou almejam um dia vir a fazer), têm obviamente interesse em manter o debate num nível meramente teórico em que o conteúdo da wikileaks é posto para segundo plano (ilegal ou irrelevante). O lado do prós que se define apenas como oposição teórica aos defensores do status quo, ou apenas como defesa de Assange-herói, está na prática a ter efeito zero sobre o mesmo.

A atitude de no pasa nada só pode ser combatida com a moralização daquilo que a wikileaks traz à luz do dia, mostrando que de facto há algo de errado na maneira como os Estados gerem a vida de pessoas. Sem essa moralização, depois do choque a transparência servirá apenas para aumentar a aceitação do status quo. Ou alguém acredita, como se conta nos livros de História, que “o povo” nunca esteve consciente das atrocidades dos seus regimes?

12 pensamentos sobre “Wikileaks: um teste ao jornalismo cívico

  1. Elisabete,

    neste dias é difícil é tentar fazer perceber que pode haver uma justa medida no tipo de actividade que a Wikileaks desenvolve. O segredo e, até, a hipocrisia, são uma espécie de cimento que permite a vida em sociedade e nem a transparência absoluta (Wikileaks) nem o segredo total nos permitem sequer relacionar uns com os outros. Pior, a primeira leva inevitavelmente ao segundo pois, por definição, a total transparência só na ausência de segredo o que implica a ausência de comunicação ou no limite, o segredo absoluto. E não seria bonito. Tanto o segredo como a transparência são necessários e louváveis. Na justa medida e, essa, só o bom senso pode determinar

  2. ruicarmo

    A expressão do teu título “jornalismo cívico” causa arrepios… 🙂
    A wikileaks é uma fonte, só vale enquanto tal e como qualquer outra deve ser tratada. E pela sua abertura (basta querer, para consultar) coloca um desafio interessante aos media. Qause nada mais.

  3. elisabetejoaquim

    Helder, o meu ponto era que a transparência por si só é inócua (se não for interpretada/moralizada).

    Rui, o título “jornalismo cívico” dirige-se aos cidadãos, não aos media. O que eu digo no post é precisamente como deve ser tratada enquanto fonte, mas pelos cidadãos.

  4. Elisabete, a transparência nunca é inócua porque obviamente os receptores da informação são seres morais/volitivos.

    Mais, na realidade, naquilo que é suposto não ser inócuo – ver Guebuza e luvas na venda de Cahora Bassa – é-o de facto, naquilo que devia ser – o que respeita à diplomacia (guerra sem armas nem mortos), localização de alvos estratégicos, espionagem – não é inócuo, pelo contrário. E esse é o problema, a transparência pela transparência como meio de controlo do poder, não resolve nada e, no limite, só piora.
    O que é que de facto todos, absolutamente todos, queremos e devemos saber? Tudo? Acabaremos a não saber nada.

  5. elisabetejoaquim

    Rui, os receptores devem ler a informação colocando-se na posição de cidadão (pessoas que pagam impostos e indirectamente legitimam poder), e não na posição do Estado. Agora o que cada cidadão pretende que se faça em seu nome, é outro assunto.

    Helder, se ninguém ligar ao que está na wikileaks ou se a abordagem “no pasa nada” vingar, haver ou não transparência não terá qualquer efeito nos cidadãos, é nesse sentido moral que é inócua. Claro que na perspectiva da relação entre Estados não é inócuo que outros Estados, ou terroristas, vá, saibam dos seus segredos, mas não é essa a perspectiva que me interessa.

  6. CN

    No saldo o que ficará é:

    – as normas de segurança vão apertar
    – as comunicações mais cuidadosas
    – em parte, a diplomacia não sai mal e até sairão bem em alguns/muitos (saldo a fazer) casos, bem mais inócuo do que serão as comunicações e actividade de serviços secretos, geram relatórios de avaliação de personalidades, eventos, etc.
    – mas… o positivo é que cria insegurança suficiente nos participantes, sendo positivo, na medida em que previne e torna mais difícil (se bem que não impede) o conspiracionismo de Estado, ou seja, para o efectuarem as medidas de segredo terão ainda de ser maiores, mas ao ser assim, também correm maiores riscos posteriores.

    Quanto à actividade de diplomacia, esta não está em causa, a diplomacia é útil, é o canal de comunicação entre monopólios territoriais. O irónico é que os alguns falcões o que sentem de perda nisto, é que a sua visão particular da actividade de diplomacia como instrumento de guerra por outros meios, sentem a perda e o risco maior, desse tipo de diplomacia, que fica mais exposta.

  7. ruicarmo

    Elisabete, mas isso é o que qualquer cidadão tem a liberdade de fazer, desde que haja liberdade de imprensa e de expressão.

  8. elisabetejoaquim

    Não me diga Rui Botelho, agradeço o preciosismo. Por isso é que a facção da sociedade que tem interesse em convencer o resto da sociedade disso deve ter um papel activo de consciencialização, em vez de se masturbar em debates teóricos. A consciência da sociedade apolítica nunca pode ser alterada simplesmente pela existência de transparência. O meu ponto era que é preciso interpretar e moralizar os dados tornados públicos (nessa espécie de jornalismo cívico) de modo a ter algum impacto na sociedade. A wikileaks é uma excelente oportunidade, e tudo aponta para o facto de vir a ser perdida.

  9. elisabetejoaquim

    Quanto à questão da diplomacia (perspectiva do Estado), que parece interessar a maior parte dos comentários, concordo com o CN: a transparência pode ser entendida como benéfica em si (para os cidadãos) pois poderá obrigar os Estados a uma maior revisão das suas acções num raciocínio custo-benefício da sua eventual publicação. Mas ainda assim esse custo depende totalmente do feed-back que as publicações forem ter na opinião pública. Por exemplo, não tenho visto os media tradicionais americanos muito interessados em explorar a questão da guerra do Iraque como baseada em falsos pressupostos (o que pode ser sobejamente explorado através da wikileaks), o que nos leva de volta à questão do jornalismo cívico. Se compararmos o efeito que teve a exposição dos pressupostos da guerra do Vietnam via TV com a exploração da questão guerra do Iraque/Afeganistão via Internet, parece-me óbvio que a transparência por si só perdeu a sua capacidade de impacto na consciência cívica.

  10. Pingback: Wikileaks em perspectivas | OrdemLivre.org/blog

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