Da liberdade de saber ou da cobiça do pensamento dos outros

Wikileaks, a eterna cobiça do pensamento dos outros por Susana Toscano

Li há imensos anos um conto de que esqueci o autor e que, a propósito da tecnológica febre Wikileaks que agora nos devora, ressuscitou na vaga memória que guardei dele.
Contava a história de um homem que não suportava a incerteza sobre a sinceridade das palavras que os outros lhe dirigiam. Suspeitava de tanto entendimento, de tanta cortesia, duvidava que não houvesse muito mais maus pensamentos e maus instintos do que aqueles que eram confessados e vivia a suspirar por um mundo de franqueza e de transparência. Ele não se contentava com as aparências, queria saber se cada um dizia exactamente o que pensava, sem nenhuma espécie de ocultação, era disso, acreditava ele, que dependia a felicidade sem sombras. E vivia tão amargurado com as suas dúvidas que um dia um mago lhe deu o dom de ler os pensamentos alheios, com a condição de nunca deixar que os outros conhecessem essa sua capacidade, teria que apanhar os outros desprevenidos para lhes captar os segredos. Ele saiu para a rua radiante, convencido de que iria finalmente ordenar o mundo à sua maneira, denunciando hipocrisias e falsidades inconfessadas. Logo ao virar da esquina cumprimentou o merceeiro, Bom dia!, o outro respondeu-lhe amavelmente, Bom dia, mas logo lhe ouviu o pensamento calado “espero que não pares por aqui muito tempo, tenho mais que fazer”, pouco depois um amigo que não encontrava há longa data, “estás óptimo, o tempo não passa por ti”, mas lá estava a escapar-se o espanto “este tipo está velho e cansado, estará doente?” e assim por diante, um encontro após outro e a conversa era sempre turva, o ruído do pensamento intervinha e nunca coincidia em pleno com o calor das palavras ou com a simpatia do sorriso acolhedor. Desvairado, tropeçou num cão que lhe ladrou furiosamente enquanto o dono lhe puxava a trela com um “desculpe, senhor, ele não morde”, mas os seus ouvidos quase estoiraram ao perceber “tonto, não vê por onde vai, tão cedo e já embriagado!” Era agora para ele evidente que todos viviam a mentir, a esconder os seus verdadeiros sentimentos, ninguém era absolutamente sincero, mesmo nos gestos mais simples. Começou a fugir das pessoas, mas ainda assim o pensamento delas perseguia-o, “olha aquele, agora nem cumprimenta, que grande malcriado, parecia tão educado, enganou-nos bem”, e outras maldades, sempre silenciosas, mas tão audíveis para ele que o agrediam como bofetadas. A vida tornou-se-lhe num inferno, passou a antecipar-se em agressividade, “eu sei o que estás a pensar, meu malandro, diz lá, diz lá se és capaz”, os outros deixaram de se esforçar por lhe serem agradáveis e respondiam-lhe desabridamente, mesmo assim sendo o pensamento ainda pior do que as palavras ditas com brusquidão. E ele, até então sempre tão respeitado no bairro, via agora que todos se afastavam mal lhe viam a sombra ao dobrar a esquina, deitando-lhe olhares hostis ou de desdém.
O homem caiu na maior infelicidade, afastou-se dos amigos e mal saía à rua, tinha saudades de receber os sorrisos dos outros, de ser acolhido com um ar cortês ou prazenteiro, queria que lhe estendessem a mão num aperto forte sem sentir a maldita corrente negativa a denunciar-lhe o que deve ficar calado. Chamou o mago e pediu que o libertasse daquele castigo, mas o mago disse-lhe que não podia fazer nada porque, ao apoderar-se do pensamento dos outros, só lhe restava agora aprender a viver sem tolerância nem piedade.
E ele percebeu que se condenara para sempre à mais absoluta solidão.

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