Quanto menos dinheiro passar pelo Estado, melhor

Há dias, o dr. Silva Pereira disse que, com a sua proposta de revisão constitucional, o PSD estava a abrir uma “polémica artificial”. Por muito estranho que possa parecer (e por muito que me incomode), parece-me que o dr. Silva Pereira tem razão. Como o João Luís Pinto e a Maria João Marques têm procurado demonstrar, não só esta revisão terá poucas hipóteses de vir a ser posta em prática, como o espírito reformador de Passos Coelho que ela supostamente evidenciaria parece ser ilusório: estas propostas apenas viriam mudar alguma coisa para ficar tudo na mesma (ou pior).

Claro que, com o seu apreço pela berraria e a irrelevância, o PS não deixará, como não tem deixado, de contribuir para alimentar a tal “polémica artificial” que o PSD terá iniciado. Mas, apesar de artificial, a polémica tem os seus méritos: por entre os berros contra o “neoliberalismo” e a “injustiça social”, lá se vai ouvindo uma discussão, que há muito deveria estar a ser feita, acerca de como serviços como o da Saúde devem ser prestados e financiados.

Dos críticos da proposta do PSD que a levam a sério, vendo nela a ameaça do espectro neoliberal, argumenta-se que a “privatização da saúde” obrigaria uma série de pessoas que, até aqui, usufruem de serviços de saúde gratuitos, a passarem a pagar por eles, o que teria apenas a consequência de as empobrecer.

Ora, para muitas dessas pessoas (as que pagam impostos sobre os seus rendimentos), esses serviços não são gratuitos, antes pelo contrário: eles são pagos indirectamente através dos impostos que o Estado cobra e depois distribui de acordo com os seus critérios. Ao obrigar as pessoas a pagarem pelos serviços de saúde que usassem, e desde que introduzisse um corte nos impostos proporcional à diminuição de custos que o novo modelo de financiamento implicaria, o Estado estaria apenas a eliminar um intermediário: em vez do dinheiro que as pessoas atiram para o sistema ser entregue ao Estado (através dos impostos por este cobrados) e depois voltar às mesmas pessoas (no momento em que estes usam serviços como o da Saúde), seriam as pessoas, que usam esses serviços, a colocarem esse dinheiro directamente nos serviços a que recorressem.

Mas, pergunta o caro leitor: se, no modelo actual, o dinheiro que as pessoas entregam nos impostos acaba por, de forma indirectamente, regerssar a essas mesmas pessoas, que diferença fará se elas deixarem de o pagar em impostos e o pagarem como um preço pelos serviços que usam? Se os impostos já funcionam como preços indirectamente cobrados, onde estaria a diferença?

A diferença estaria na eficiência com que esse dinheiro é distribuído. Num modelo de financiamento da saúde que usa os impostos como preço indirectamente cobrado, o dinheiro é distribuído de acordo com os critérios dos políticos e funcionários que administram o sistema, e não de acordo com as necessidades das pessoas que recorrem a esses serviços. Se as pessoas pagarem directamente por esses serviços, esses terão de responder às suas necessidades, regulando a sua oferta de acordo com a procura dos pacientes, em vez dos objectivos traçados pelos políticos e burocratas.

Num modelo em que o dinheiro passa pelo Estado antes de voltar aos contribuintes, os serviços são maus, pois o “cliente” é o Estado que financia o hospital, e não o doente que a ele recorre; aqueles com mais posses, com maiores rendimentos, podem recorrer ao privado, mas como têm de pagar impostos na mesma, o facto de haver menos procura dos hospitais públicos (esses tais “ricos” que “vão ao privado”) não afecta o seu financiamento, o que faz com que eles não sintam a necessidade de adequar a sua “oferta” à procura realmente existente. Assim, nos hospitais públicos, há desperdício de dinheiro em algumas àreas, enquanto outras são obrigadas a realizar cortes significativos. A qualidade do serviço não melhora, mas como a sobrevivência do serviço não depende da qualidade deste, mas dos humores do Ministro da Saúde, também não há incentivo para este melhorar. Esqueça, caro leitor, a “artificialidade” da polémica constitucional de Passos Coelho: olhe para o SNS português, e facilmente perceberá como quanto menos dinheiro passar pelo Estado, e for directamente distribuído por si, melhor será. Para todos.

7 pensamentos sobre “Quanto menos dinheiro passar pelo Estado, melhor

  1. Ora aqui está um artigo impecável, mas cuja a premissa base levaria a uma conclusão oposta.

    Premissa: “o Estado estaria apenas a eliminar um intermediário”

    O problema foi na sua identificação do intermediário. Senão vejamos:

    “no modelo actual, o dinheiro que as pessoas entregam nos impostos acaba por, de forma indirectamente, regerssar a essas mesmas pessoas, que diferença fará se elas deixarem de o pagar em impostos e o pagarem como um preço pelos serviços que usam?”

    Se tiverem a capacidade para pagar tudo bem. Se pagarem o mesmo tudo bem. Mas e se não tiverem essa capacidade? O que é que acontece caso uma pessoa não tenha capacidade de pagar nem sequer os cuidados mínimos? Partindo do pressuposto que a sua resposta não é a de: deixem essa pessoa morrer então muito provavelmente defenderia que deve de ser o Estado a pagar esses cuidados.

    O problema é que nesse caso, o intermediário não é o Estado mas sim o hospital privado em comparação com a situação actual. Pelo que se quer eliminar o intermediário é o hospital privado que terá de eliminar da equação…

    ———————————————————————————

    Claro que existe uma 3ª opção, que é a dos hospitais privados serem obrigados a fornecer gratuitamente serviços a estas pessoas e com preços diferenciados consoante o rendimento das pessoas. Seria um caso interessante de explorar, mas obviamente ainda continuaria a ter que existir uma entidade que fiscalizasse a actuação neste cenário, o que em si também acarreta custos adicionais.

  2. Bruno Alves

    Caro Joao, para quem nao tivesse meios de pagar esse serviço, o Estado dar-lhes-ia o dinheiro para o fazer, mas seriam as pessoas a decidir a que hospital (e por que serviço) se destinaria esse dinheiro.

  3. João Cardiga

    Sim mas isso não muda o facto de hospital ser o intermediário entre o pagamento de impostos para pagamento de serviços e os próprios serviços. A unica coisa que faz (e não é pouco) é dar opção de escolha. No entanto esse modelo não tem justificação em termos financeiros (tendencialmente será mais caro para o cidadão) mas a meu ver em termos de modelo (pois atribui poder de escolha ao cidadão).

  4. agfernandes

    Bruno

    O que mais impressiona é a oportunidade de certas propostas. Numa fase de enorme fragilidade como a actual, pegar logo no SNS…
    E o PS bem pode estar caladinho também, porque começar por fechar escolas no interior do país…
    Todas estas propostas soam a pretexto para dar a entender que se está capaz de gerir o país, que se tem um projecto credível. Mas nada de tocar nos privilégios da elite política, nas empresas públicas, nem de avaliar a gestão danosa de um colectivo.
    Ana

  5. H.

    Caro Joao, para quem nao tivesse meios de pagar esse serviço, o Estado dar-lhes-ia o dinheiro para o fazer, mas seriam as pessoas a decidir a que hospital (e por que serviço) se destinaria esse dinheiro.

    O problema deste modelo é a inexistência de incentivos para que os consumidores se comportem racionalmente. Ninguém se preocupa em gastar bem dinheiro dos outros: se o ministro e os burocratas não o fazem, os doentes também não o farão. Mesmo a presença do estado tem um efeito marginal: acontece o mesmo nos EUA onde as seguradoras são o intermediário.

    Assim, o efeito na questão primordial e essencial – custos e eficiência no mercado da saúde – será negligenciável. É um movimento lateral. Há sistemas melhores.

  6. H.

    Claro que existe uma 3ª opção, que é a dos hospitais privados serem obrigados a fornecer gratuitamente serviços a estas pessoas e com preços diferenciados consoante o rendimento das pessoas. Seria um caso interessante de explorar, mas obviamente ainda continuaria a ter que existir uma entidade que fiscalizasse a actuação neste cenário, o que em si também acarreta custos adicionais.

    Se fossem obrigados a fornecer serviços gratuitamente rapidamente se tornariam hospitais públicos e retornaríamos ao sistema actual. Mas sim, seria necessário implementar um sistema de tabelação de preços – os preços seriam fixados, tal como agora, por burocratas. O que implicaria um racionamento na oferta – exactamente o que acontece na situação actual. Caso contrário os custos explodiriam e não haveria dinheiro para os pagar.

  7. ricardo saramago

    Proponho o fim da ADSE.O socialismo deve ser para todos e não só para o sector privado.
    Se quiserem, vão ao SNS como os outros.

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