Não tenho muito a opor à substância do que aqui escreve o João Miranda sobre a necessidade, eu diria que sufocante, de despolitizar a sociedade (ou, quem sabe, de politizá-la no bom sentido). A minha diferença é no achar que a proposta de revisão da constituição avançada pelo PSD contribui nesse sentido, e não no seu retrocesso.
Senão vejamos, e pegando no exemplo da educação: o PSD propõe a substituição da alínea que refere que “[o] Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população” por “[o] Estado assegura a existência de uma rede de estabelecimentos de ensino
que cubra as necessidades de toda a população.”. Ora o conceito de “assegura a existência” é suficientemente ambíguo, ainda mais sustentado na realidade existente e nas interpretações difusas de um já de si difuso tribunal constitucional, para acreditar que será muito mais provável um entendimento contrário ao que alegraria tanto o João Miranda como a mim, e muito próximo do presente. O próprio recurso a um articulado pouco objectivo e directo faz temer o pior, a começar pelas reservas mentais que poderão estar por detrás dessa redacção.
Porque afinal o “assegurar a existência”? Porquê o “rede de estabelecimentos”? Porquê sequer a existência da alínea quando o mesmo PSD propõe umas linhas antes que se mantenha o ensino como “gratuito”? Como é que ficamos?
A carga fiscal total tenderá sempre para um valor de equilibrio que reflecte a relação de forças entre Estado e sociedade, independentemente da forma como a cobrança é feita.
Se uma grande parte da população tiver que pagar aquilo que agora é gratuito, passa-se mais facilmente para o lado daqueles que defendem a redução de impostos.
Bem, se até o João Miranda acredita que a realidade actual é a de que “agora é gratuito”, vislumbro que vai ser mesmo muito complicado convencer a generalidade das pessoas do contrário!
A realidade é que não é gratuito e, pior, de que o tal equilíbrio social que o João Miranda refere convergiu para um ponto em que somente 15% dos contribuintes (ou seja, um valor que seria muito mais irrisório se se olhasse para a sociedade como um todo) foram “democraticamente obrigados” pelos demais a pagar a parte substancial dessa “gratuitidade”.
Ora, a menos que o João Miranda acredite que Passos Coelho ou outro qualquer partido precisem desta mudança na constituição para amanhã virem anunciar como seu programa eleitoral a privatização da rede pública de hospitais e a diminuição dos impostos até restar somente o suficiente para pagar os cuidados de saúde ou a educação de quem não o pode fazer, a consequência imediata e previsível das alterações propostas será tão somente a oneração adicional dos que já pagam (e porque já pagam!) impostos. É fácil de ver: nunca a diminuta minoria pagante existente terá afinal capacidade reivindicativa e democrática para contrariar a horda de freeriders que os explora e continuará a explorar.
Não vai haver pagadores “frescos” no sistema. A massa reivindicadora será exactamente a mesma que no momento presente, a menos do facto de que provavelmente estará mais enfurecida.
Veja-se o exemplo paradigmático das SCUT: o João Miranda já ouviu alguém no PSD, nomeadamente Passos Coelho ou o seu líder parlamentar, defender uma diminuição dos impostos como consequência da expansão do princípio do utilizador pagador? Impostos esses, os pagos pelos donos e utilizadores de veículos automóveis, que são dos maiores contribuintes líquidos do orçamento de estado?
Não, ouviu algo exactamente o contrário: que se acrescente a cobrança e que se criem “discriminações positivas”. Ora é de quem tal coisa que o João Miranda espera a “tal” revisão constitucional, com uma suposta intenção de “despolitizar” e de dar mais capacidade reivindicativa aos contribuintes, quando a leitura concreta das suas acções (num cenário em que não tem limitações constitucionais) desmente esse entendimento?
dois lobos à mesa c uma ovelha decidem democraticamente o q será o jantar..
Com maioria qualificada… 🙂
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