O problema de Cavaco

Como o país não tem problemas sérios com que se preocupar (o Primeiro-Ministro, esse símbolo da honestidade e franqueza, garante que Portugal está melhor preparado que qualquer outro para enfrentar a crise, e a sua palavra, claro, é o suficiente para acreditar que é verdade), a “inteligência” pátria dedica-se com particular sofreguidão a discutir as presidenciais. À “esquerda”, a novela em torno de Alegre, as birras de Soares, e as intenções mais ou menos escondidas de Sócrates têm animado os espíritos dos jornalistas, sempre arrebatados por este género de folhetins. Não querendo ficar para trás, a “direita” tratou de arranjar a sua própria polémica.

Tudo começou quando o Presidente decidiu não vetar a nova lei do “casamento gay”, ao mesmo tempo que anunciava não concordar com a lei. Os católicos logo se sentiram traídos pelo Presidente e, sentindo o cheiro a sangue, o dr. Santana Lopes regressou das catacumbas onde pacificamente jazia para dizer que seria necessário haver uma “alternativa” a Cavaco (o próprio “Pedro”, presume-se, estará disposto a fazer o sacríficio). E até o dr. Paulo Portas, sempre desejoso de se armar em “maquiavélico”, veio dizer que gostaria de apoiar Bagão Félix (para quem não conheça, um senhor que se destaca por ser adepto do Benfica). Incomodado (compreensivelmente) pelo espectáculo, Marques Mendes veio dizer que as declarações destes dois rapazes não passavam de disparates.

Marques Mendes, em parte, tem razão. Mas não por, como o ex-líder laranja pretende, Cavaco merecer ser defendido. Apenas porque criticar Cavaco Silva por causa do “casamento gay” mostra bem a falta de consciência da grave situação política que o país enfrenta e das responsabilidades de Cavaco Silva no agravamento da dita.

Nos últimos anos, a democracia portuguesa transformou-se num autêntico lamaçal. O uso despudorado da mentira por parte do Governo, a constante quebra de promessas eleitorais, a gestão irresponsável da coisa pública, os sucessivos casos em que a excelsa figura do Primeiro-Ministro se viu envolvida, tudo foi contribuindo para o aumento da desconfiança (para não dizer do nojo) que os portugueses sentem em relação, não apenas ao Governo, mas a todos os políticos. E a tudo isto o senhor Presidente da República foi assistindo, quase impávido e sereno, alertando por vezes contra este ou aquele excesso, mas sempre vindo dar a mão ao Governo quando este precisava, com medo que a “instabilidade” agravasse a situação.

Cavaco Silva não percebeu que a “estabilidade” deste Governo é a doença de que Portugal padece. Não percebeu que deixar as coisas continuarem como normalmente significa deixar o país apodrecer ainda mais. Como os leitores mais antigos e mais atentos saberão, sou tudo menos um defensor de um “presidencialismo”, e acho que o cargo de Presidente, pela sua natureza, dificilmente pode ser mais que irrelevante ou nocivo para o país. Mas, dada a situação do país, acho também que já há muito Cavaco deveria ter demitido o Governo, explicando que por muitos riscos que uma tal opção implique, o Presidente não poderia assistir passivamente a comportamentos que degradam a nossa democracia, e consequentemente, tornam cada vez mais difícil a realização das reformas de que o país precisa para sair do poço em que caíu.

Cavaco não o fez. Se o caso do “casamento gay” importa para alguma coisa, é apenas por mostrar que o próprio Cavaco reconhece a sua própria impotência para zelar por aquilo que considera importante. A “direita”, quer por estar genuinamente preocupada com as consequências da lei (os católicos) ou por se excitar com a oportunidade de armar confusão (Santana, Portas e os demais), apenas mostra a sua reconhecida estupidez, ao não perceber que o erro de Cavaco está em ter presidido à degradação do clima político de Portugal. Este sim, é o verdadeiro problema de Cavaco. E do país.

13 pensamentos sobre “O problema de Cavaco

  1. lucklucky

    “Apenas porque criticar Cavaco Silva por causa do “casamento gay” mostra bem a falta de consciência da grave situação política que o país enfrenta e das responsabilidades de Cavaco Silva no agravamento da dita.”

    Muito bem.

  2. António Barreto

    Cavaco Silva não podia não perceber que Sócrates não tem perfil para liderar um governo de maioria relativa. A hecatombe estava à vista.

    Julgo saber que o PR poderia ter recusado Sócrates como candidato a PM e solicitado a indicação de outra personagem ao Partido vencedor sugerindo alguns nomes que suscitassem alargado consenso, como por exemplo, Guilherme de Oliveira Martins; competente, responsável, experiente e respeitado por todos. Porque não o fez?

    Suspeito que teve medo da retaliação da máquina de propaganda Socialista e dos seus aliados. E se assim foi, tenho de concluir que Portugal atingiu a condição de “Estado exíguo”, como o definiu Adriano Moreira, na medida em que o regular funcionamento das instituições está decisivamente prejudicado. O futuro próximo dirá se há ou não reversibilidade.

    Uma das prioridades políticas actuais, em minha opinião, consiste em “refrescar” o conceito de Democracia para que todos saibamos distinguir, os Democratas autênticos dos outros.

  3. cy goes

    Congratulações por ter definido o verdadeiro falhanço do PR. Nos últimos quatro anos o grande cancro que generalizou-se deve muito a maldita e fatal cooperação estratégica. A divida moral do Cavaco foi e é a omissão. Há momentos em que um murro na mesa muda tudo. Possivelmente o tratamento de choque seria menos doloroso.
    Cumprimentos
    Alice Goes

  4. ricardo saramago

    Os portugueses já perceberam, mas os políticos e os jornalistas ainda não, que estão entregues à sua sorte.
    O comportamento político deste presidente, demonstra a incapacidade deste regime em gerar soluções.
    Nem a perda da independência do país e a iminência de bancarrota a que estamos a assistir, foi suficiente para que houvesse uma reacção patríotica e decisiva por parte dos partidos políticos e do PR.
    Em breve teremos que prestar contas aos credores via FMI, e a seguir mudar de vida e de regime político.

  5. JS

    Bom. Apoiado.
    A Constituição da República pode ser interpretada diferentemente. Como mais ou menos restritiva das opções presidênciais. Mas sempre por ele.
    “The singer, not the song”. “O interprete, para lá da canção”
    Vamos ter opção de escolher, o mesmo ou outro interprete.
    Mas a canção, fica a mesma? Yeckh !

  6. confuso

    Confesso que não percebi a intencionalidade da referência ao facto de Bagão Félix ser do Benfica…

  7. Euro2cent

    Os socialistas, em geral burguesia urbana, fartam-se de encher a boca com “o povo”, mas odeiam “provincianos” que não frequentaram os infantários onde liam umas revistas de modas francesas. Aconteceu com Ramalho Eanes, idem com Cavaco Silva. (Agora, irónicamente, houve um provinciano mais manhoso – excepcionalmente manhoso – que lhes pôs a sela em cima, e lá vão eles atrás acabrunhados a apanhar migalhas do chão e a metê-las à boca.)

    O único problema disto tudo é que o Presidente tem complexos de inferioridade face à corja jacobina, e lhe faltam a espinha para fazer o que devia, e os tomates para aguentar bocas de javardos. Em suma, falta-nos um Silva com a lata do Sousa.

    Se nem depois do autêntico levantamento popular que foi a visita de Bento XVI arranjou ânimo, mais vale fechar a loja e mandar-se substituir por um espantalho. Esse faz a mesma figura e levanta menos expectativas.

  8. bla bla bla

    “Nos últimos anos, a democracia portuguesa transformou-se num autêntico lamaçal.”

    O comportamento de Cavaco demonstrou que ele é parte/co-criador do lamaçal. Só isso.

    Ele não ficou a “assistir passivamente a comportamentos”. Pela sua inacção validou-os. Pelo silêncio foi cúmplice.

    É grotesco indignar-se e vetar uma lei (estatuto dos Açores) que não interessa a ninguém (fazendo uma comunicação esquisita ao País), sabendo que seria aprovada na 2ª votação, e justificar a promulgação do casamento gay porque seria aprovado na 2ª votação (apesar de ser contra as suas convicções). ???????????????
    A lei dos Açores tocava na quinta Cavaco PR ??????????????

    Não percebo. Não entendo as prioridades, força das convicções, orientação. Simplesmente não entendo.
    Cavaco é parte importante do problema do lamaçal, não é parte da solução.

  9. JS

    B.A. – Se me permite, na sequência da sua excelente análise, pergunto-lhe.
    Até que ponto a vontade de “cumprir”, de sobreviver, para um segundo mandato, tolhe a qualidade do exercício, de um PR, no seu primeiro mandato?

    Até que ponto esta possibilidade, de 2 mandatos presidências, resulta (sempre?) num primeiro mandato amorfo? e perigoso para o País em crise ?

    O presente PR, em regime de um só mandato, teria (já?) actuado diferentemente?

    Até que ponto a possibilidade de um segundo mandato se está tornar prejudicial para a imagem, até, dos próprios Presidentes da República?

  10. “Bagão Félix (para quem não conheça, um senhor que se destaca por ser adepto do Benfica)”.

    Bruno Alves (nome de capitão), além de concordar com tudo o que refere, destaco esta parte (menos) importante mas significativa.

    É irrelevante identificar a clubite do homem, que não é clubite aguda e joga em sua defesa. O problema é que Bagão só pode ser, isso sim de forma relevante, identificado como o ministro que, no Governo de Santana-Durão-Portas, liberalizou os despedimentos na peculiaridade de serem permitidos a empresas indiferentemente de terem ou não lucros (ou prejuízos).

    Há muita gente que esquece isto, mas se o homem é conhecido, para mim, é por isso. A maior facilidade de proceder-se a despedimentos foi por não fazer constar da Lei que pelo menos as empresas lucrativas deveriam ter vedado esse instrumento de regulação laboral por mero pretexto de “restruturação” – e sei do que falo!…

    Quanto ao Cavaco, para esse calvário não dou nem votei. Acho-o, além da cara de vómito permanente, um tão indigno político – que nem queria ser “profissional” mas é um distinto maitre a penser na coisa -, um bardamerdas sem coragem nem pingo de dignidade como qualquer dos que antes dele fomentaram tanta alarvidade que deixaram este País no lodaçal que é.

    Cavaco está ao nível das indigências políticas e irrelevâncias notáveis que o 25/4 congeminou.

    Mas não queria abstrair-me do enfoque acima e de um Bagão que, como todos os outros, passará sem ser responsabilizado política e criminalmente pelo que permitiu que se fizesse.

    Mas o ser benfiquista só reforça a miserável condição que, em maioria, tem afundado este País e confirmado a herança de Salazar: pobres e benfiquistas.

  11. Rui

    Caro Bruno,

    aprecio em geral as suas análises e concordo plenamente com o enquadramento que deu à “mini-novela” que algumas pessoas de direita, menos ocupadas, inventaram acerca das presidenciais.
    já relativamente ao resto, não posso acompanhar. Cavaco deve gostar tanto de Sócrates como eu e anseia por se ver livre do sujeito. agora, temos que ser pragmáticos: de que valeria demitir o governo se, com a central de propaganda que existe, a comunicação aliada e outros boys, o mais que o presidente se arriscava era oferecer uma maioria absoluta ao PS e colocar em risco a reeleição. goste-se ou não, Cavaco é hoje uma das poucas garantias de contra poder ao actual PS.

  12. Bruno Alves

    Meus caros,
    1- a referencia a Bagao: identifica-lo como “benfiquista”, em vez de, por exemplo, ex-Ministro, pretendia servir para o retratar como uma irrelevancia. pelos vistos nao funcionou muito bem.

    2-Eventual limitaçao a um so mandato: nao sei se termos um Mario Soares de segundo mandato, SEMPRE, sera uma boa ideia.

    3- A ideia de que demitir o Governo seria uma imprudencia de Cavaco, e que Cavaco e uma garantia de contra-poder: Cavaco poderia cair depois de fazer isso, mas ao menos nao seria responsavel pelo rumo das coisas (assim, fica como responsavel). E quanto ao contra-poder, nao vejo grandes provas disso.

  13. António Barreto

    As referências ao Benfica e aos Benfiquistas constituem um acto de má fé que descredibiliza a seriedade do autor da postagem. Deixem lá o Benfica em paz. Afinal, trinta e seis anos de iluminada Democracia, de disfrutamento da alegada “liberdade”, conduziram o país à ruína destruindo a reputação da Nação. O que é que o Benfica tem a ver com isso? Antes, orgulhosamente sós…agora…envergonhadamente acompanhados…de mão estendida! Os alegados “Democratas” destruíram a possibilidade histórica de regeneração da imagem de Portugal e dos Portugueses no Mundo. Salazar já cá não está e…não constituem as vitórias do FCP a “demonstração das alegadas virtudes do actual regime”?

    É melhor deixar o futebol para outras procissões. Mas…podeis dormir descansados…já lá vão os novéis descobridores restituir a dignidade perdida à Pátria.

    E quanto ao alegado facilitamento dos despedimentos atribuídos a Bagão, alto e pára o baile! É música de outro rosário. Também sei do que falo.

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