Ficar à espera da bola não chega

Certamente animado pelas imagens de confrontos nas ruas das cidades gregas, o Partido Comunista Português decidiu apresentar uma moção de censura ao Governo de José Sócrates. O Bloco de Esquerda, ultimamente muito incomodado com o “governo bicéfalo” (a mim parece-me mais acéfalo, mas talvez esteja enganado) dos “tangos” de Sócrates e Passos Coelho, já anunciou que apoiaria a iniciativa (como agora se diz). Já o CDS e o PSD preferem abster-se, condenando assim à partida a moção comunista.

Procurando justificar a posição laranja, Miguel Relvas, esse símbolo da dignidade e firmeza políticas, veio dizer que o PSD continuaria “a manter a censura ao Governo naquilo que ele merece, mas, enquanto se justificar, vamos continuar a exigir que o Governo governe e que assuma as suas responsabilidades, desde logo, a de retirar Portugal e os portugueses da situação em que os colocou”. É uma justificação que explica muito do pensamento (chamemos-lhe assim, hoje sinto-me generoso) da actual direcção do PSD, e faz temer que ela não vá muito longe, arrastando consigo o país.

O que Relvas, com a sofisticação intelectual que lhe é conhecida, está a dizer com “exigir que o Governo governe e que assuma as suas responsabilidades, desde logo, a de retirar Portugal e os portugueses da situação em que os colocou”, é que acha que, já que o PS fez asneira e governou mal, agora deve ser o PS a executar as medidas impopulares que a asneira anterior implica que sejam agora tomadas. É esta a “estratégia” delineada pelas cabeças em torno de Passos Coelho: já que o PS seguiu uma política de terra queimada, deixá-lo a tentar apagar o fogo, e quando forem apanhados por ele, chegar ao terreno já livre e, qual “especulador sem escrúpulos”, lucrar com ele. O PSD espera que seja o PS a sofrer as consequências de tomar medidas impopulares, facilitando o acesso ao poder, que consideram estar ainda demasiado longe nas actuais circunstâncias. Note-se, em primeiro lugar, como esta gente está disposta a deixar alegremente a situação política do país degradar-se, desde que isso facilite o seu acesso ao poder daqui a uns tempos. É sempre bom saber a qualidade dos “estadistas” que querem “mudar” o país. Em segundo lugar, tenho sérias dúvidas que o “desgaste” do PS seja suficiente para lançar o poder no colo do PSD, como imagina a liderança laranja.

Essa ideia de que o “cansaço” dos portugueses com Sócrates faz com que o PSD apenas precise de ficar sentado e esperar que “as coisas sigam o seu rumo” há muito que se instalou no PSD. No Congresso de Mafra, foi essa ideia que fez inúmeros oradores afirmarem que o partido estava a eleger “o próximo Primeiro-Ministro de Portugal”. Como fora essa ideia a levar os críticos de Manuela Ferreira Leite a dizerem que perante um Governo tão fragilizado por “casos” e desgastado pela “crise”, só mesmo a suposta inabilidade de Ferreira Leite pode explicar a sobrevivência do regime socrático. Mas, como já várias vezes escrevi, quanto mais apodrecido o Governo estiver, mais difícil será pô-lo no lixo.

Em primeiro lugar, porque nem a total describilização é suficiente para o Primeiro-Ministro deixar de se agarrar ao poder como eu gostaria de me agarrar a uma adolescente de qualidade estética superlativa. Como toda a sua história de vida demonstra, o cheiro de matéria fecal manifestamente não incomoda José Sócrates, que, como o outro senhor de The Wire prefere “to live in shit than to be seen to work a shovel”. Por muito que o seu regime apodreça, Sócrates nunca abdicará livremente do trono que ocupa, e de lá só poderá ser arrancado “à bomba”. “Bomba” essa que o Presidente da República, um senhor reconhecidamente pacífico, não quer largar, e longe vai o tempo (esperemos nós) em que os militares se entregavam a essas actividades. A única “bomba” que poderá ser usada será a dos eleitores nas urnas, mas temo que, quanto mais necessária ela se torne, menor seja a probabilidade deles estarem dispostos ao trabalho de a lançar.

Já antes das eleições de Setembro passado o escrevi: é precisamente o facto de vivermos num clima de “fim de regime” do PS que tornará as coisas mais difíceis para o PSD. Em primeiro lugar, a violência e degradação do debate “excita” os “fiéis”, que por muito desagradados que possam estar com Sócrates, não gostam de ver “um dos seus” ser atacado por “eles”. A podridão do regime fidelizará o PS, que tenderá, até à última hora, a proteger Sócrates como se de uma criança indefesa se tratasse (depois da última hora, a canção será outra).

Em segundo lugar, a demagogia reinante favorece os partidos de protesto, mas pequenos, o que estranhamente, acaba por favorecer o PS. O ódio a Sócrates não se traduz forçosamente no voto no PSD, podendo mais facilmente deslocar-se para o CDS ou até para o BE, partidos dados à berraria que faz o gosto do povo. É difícil a um partido que quer ser governo fazer oposição num ambiente político degradado, porque aquilo que pode motivar a conquista de votos (essa mesma degradação do regime do momento) é também aquilo que faz com que as pessoas tenham uma maior predisposição para votar em quem faz barulho, só por fazerem barulho. A degradação do Governo do PS acaba por retirar votos, não apenas ao PS, mas também ao PSD.

Até porque a podridão do Governo, arrastando consigo a desconfiança dos eleitores, traz também uma desconfiança não apenas em relação ao Governo, mas em relação à alternativa. Um Governo que mente, que manipula, que esconde e que parece corromper e estar corrompido, faz com que os eleitores, muito sabiamente, desconfiem de todo e qualquer político que lhes peça a sua confiança. Porquê confiar “nestes”, só porque nos dizem que vão ser diferentes? Os “outros” disseram “o mesmo”, e “foi o que se viu”. A desconfiança dos eleitores em relação a este Governo transforma-se, muito rapidamente, numa descrença na palavra de toda a classe política. Quanto pior o PS for, quanto mais degradado o Governo estiver, mais agreste será o clima político para aqueles que queiram promover uma alteração do estado das coisas (deixemos de lado a “mudança” obâmica, ela própria um produto e causa da podridão). Quanto menos as pessoas acreditarem no PS, menos acreditarão na possibilidade de “os outros” serem diferentes.

Os actuais responsáveis do PSD estão a seguir uma estratégia comum a alguns treinadores de futebol: tendo um ponta-de-lança alto e forte na equipa, deixam-no plantado junto à defensiva contrária, para que quando a equipa recuperar a bola, apanharem o adversário quando a sua defesa está desprotegida. O problema está em que jogar dessa forma implica o risco de, por se ter menos um jogador envolvido em tarefas defensivas (ou, no caso do PSD, por não fazer oposição e preferir queimar o PS lentamente), não ser capaz de recuperar a bola e portanto não ter oportunidades de atacar a baliza contrária. Não espero grandes tratados filosóficos de Relvas e companhia, mas um mínimo de bom senso permitir-lhes-ia perceber que, ao PSD, ficar plantado na àrea à espera da bola talvez não seja suficiente, e que ao fazê-lo o partido laranja talvez se arrisque a ser apanhado em fora-de-jogo. Mas, como já se viu, bom senso não é um bem em excesso por aqueles lados.

10 pensamentos sobre “Ficar à espera da bola não chega

  1. Luís Pedro

    O problema não é tanto de falta de bom senso, mas de medo. Passos tem medo! Passos tem medo de ser PM numa conjuntura dificílima! Passos tem medo de não ser capaz, de não ter equipa. Ora disso não se pode acusar Sócrates. Pode ter defeitos mas não é um cobardolas.

  2. JP

    Passo Coelho enganou o PSD, ou melhor, vigarizou-o. E isto é um problema insanável de carácter igual ao do PM. Vigarice com todas as letras. Nem há discussão possível sobre a maneira como este tipo deu uma volta de 180º no próprio discurso de vitória. Como apoiante de sempre do PSD, queria aproveitar para lhe desejar um muitas felicidades para o resto da vida pessoal e profissional, porque para política num país carente como nosso, não presta para anda. Desapareça antes de transformar o PSD num PS em ponto grande.

  3. Jose Domingos

    passos coelho é um embuste, como é mário soares, sampaio,guterres, cavaco, socrates, durão barroso e por aí fora. Andam a tratar da vidinha deles, todos com passados enevoados e alguns com “esqueletos” nos armários.
    A fossa está demasiado cheia, já não se consegue, tapar o nariz.

  4. agfernandes

    Bruno
    Quem é nesse filme “o ponto de lança alto e forte da equipa”? Como ouvi hoje a Villaverde Cabral, na análise da entrevista ao actual líder do PSD´: “… nem candidato a primeiro-ministro”. E ainda: “Ficámos sem alternativa.” E ainda: ” Nestes 30 anos levaram-nos duas vezes à bancarrota e mantêm-se na lógica constitucional do rotativismo político.”

    Pois eu prefiro que a revelação da sua táctica tenha sido desvendada já, para não manter “benefícios da dúvida”. É como diz, Bruno, a dispersão dos votos vai acabar por favorecer o PS, mas ambos, PS e PSD, vão perder votos. De qualquer modo, este impasse político pode vir a ter uma solução muito mais penosa para ambos. A situação não se vai aguentar como esperam, de forma cínica e calculista, as “mentes brilhantes” do actual PSD.
    Ana

  5. depatasproar

    O cinismo levado às últimas consequências — embora de uma forma pouco hábil.

    Tomemos, por exemplo, o TGV. O PPC sempre foi a favor do TGV. Mas acha que, criticando publicamente o projecto (depois de assegurada a sua viabilidade com a conivência do PR), os cidadãos acreditam nele. Mais, sabendo que o PS, o PCP e o Bloco apoiam as obras públicas, vai propor a suspensão to TGV na AR, pois sabe que vai perder a votação. Isto tudo é levado à prática, porém, denotando um amadorismo confrangedor.

    Ou seja, o PS está a fazer tudo o que o PPC gostaria de fazer, mas não tem coragem para tal. E o “jovem” está delirante, porque “sabe” que o PS é que fica com o ónus das medidas e ele só tem que esperar o tempo adequado para saltar para o “poleiro”. Entretanto, vai fazendo umas “queixinhas” aqui e ali. O brilhante guião é linear: o Cavaco é reeleito sem ondas, deita-se abaixo o governo — ou este cai de podre — e PPC é aclamado 1º ministro! Coisa simples para aquela mente simples.

    Ah, falta um pequeno pormenor: a situação do País agravar-se-á significativamente. Mas o PPC não se deixará perturbar por tais insignificâncias. O que conta é ser PM. Assim como para os seus: o que conta é tê-lo PM. É o rotativismo político no seu melhor, como referiu a Ana citando o Manuel Villaverde Cabral (que estava visivelmente indignado nos comentários à entrevista de PPC, bem conduzida por Constança Cunha e Sá).

    Resta, como consolação, estar convencido que este artista nunca exercerá funções governativas, para as quais não está manifestamente preparado (para ser suave). E resta ao PSD procurar, o mais depressa possível, sobreviver a mais este erro de casting. Porque, infelizmente, ao País não restam muito mais soluções.

    Que diabo, poderei ser bota de elástico, mas prefiro continuar a comemorar o espírito do 1º de Dezembro, do que ver as botifarras alemãs no nosso solo como um mal menor para entrarmos nos eixos. Fazer parte dos países do (novo) eixo seria uma triste e lamentável sina. Porque, não tenhamos dúvidas, não é para nos ajudar que aí vêm; é para fazer o “bail-out” dos bancos alemães e para garantir que cá os indígenas não interferem com a estabilidade do euro, e continuam obedientemente a ser bons consumidores dos seus produtos. O nosso bem-estar social é, para eles, indiferente. Longe vão os tempos de um Koln…

    Uma última nota para Manuela Ferreira Leite. Foi criticada por PPC por defender, com razão e antes do tempo, medidas que agora, por serem tomadas por PPC tardiamente, são mais gravosas para todos. Arcou estoicamente com diversas traições — agora reclassificadas por PPC como apoios claros. Mas o pormenor que caracterizou indelevelmente o carácter desta personagem de cordel foi a incapacidade de pedir desculpa a MFL. Como muito bem notou Constança Cunha e Sá, pede desculpa ao País, menos a MFL. De antologia.

  6. Incomodado

    E esta hein!…(*)

    Queriam um primeiro-ministro sombra, saiu-nos uma sombra de líder da oposição.

    (*) Recordando Fernando Pessa

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