Na Encíclica ‘Caritas in Veritate’, Bento XVI reflecte sobre o mercado, a globalização e chama a atenção para o progresso que ocorreu nos últimos anos e em diversos países, principalmente os mais pobres. Quando lemos e analisamos documentos e outras formas de divulgação do pensamento da Igreja, esquecemos que a religião católica tem uma forte vertente individual. A mensagem de Cristo foi dirigida a cada homem. Os sacramentos da comunhão e da confissão, por exemplo, são exercidos individualmente e segundo critérios que são conhecidos e julgados na esfera privada de cada um. A importância do cristianismo no realçar da pessoa humana como criada à imagem e semelhança de Deus e, por isso, única e insubstituível, sagrada até, foi um passo indispensável no processo de autonomização da pessoa da massa humana. O homem com alma, mais o valor inerente que é o direito divino à vida. Com só um Deus mais importante que qualquer governante, poder e governo e a mensagem de libertação individual, o cristianismo revolucionou o pensamento humano com efeitos que ainda hoje sentimos.
O liberalismo, a dita crença no mercado que tanto se critica, não pressupõe ganância, nem o roubo. Antes sim, e de uma forma bastante acentuada, o valor da vida humana. Apenas com o respeito de regras humanas rigorosas (que para alguns liberais, por serem tão rigorosas, implicam inspiração divina) a liberdade individual é possível e o dito mercado funciona. É importante não esquecer que o liberalismo inclui um equilíbrio muito frágil de interesses e que a sua manutenção exige valores sólidos e uma responsabilidade firmes. Há quem os busque no sentido secular da vida; há quem só os consiga descobrir na religião.
Não interessam, pois, determinados pontos de certas doutrinas, ideologias, o que lhes queiramos chamar. A Igreja, e penso que Bento XVI também nesta Encíclica, dá uma imensa margem de manobra para que os fins da solidariedade sejam alcançados. É neste sentido, creio, que o esforço de responsabilidade social a que Bento XVI se refere, se traduzem na soma de muitas tentativas individuais. Só assim me parece ser possível entender esta Encíclica, até porque esta é lida por cada um de nós em casa, sozinho, com as diversas interpretações que daí advêm. Tudo junto, estamos perante um alertar das inúmeras consciências, o cerne da mensagem da Igreja a que se junta a promessa de uma vida melhor.
“O liberalismo, a dita crença no mercado que tanto se critica, não pressupõe ganância, nem o roubo. Antes sim, e de uma forma bastante acentuada, o valor da vida humana. Apenas com o respeito de regras humanas rigorosas (que para alguns liberais, por serem tão rigorosas, implicam inspiração divina) a liberdade individual é possível e o dito mercado funciona. É importante não esquecer que o liberalismo inclui um equilíbrio muito frágil de interesses e que a sua manutenção exige valores sólidos e uma responsabilidade firmes.”
Muito bem.
Está bem explícito na encíclica que não cabe à Igreja ter “técnicas”.
Se o bem comum de objectivos sociais for alcançável por outras “écnicas” que não os de hoje tentados (colectivismo social) não será a Igreja a opor-se (e Até porque se vislumbra um grande papel da Igreja nesse caso).
O não-mercado mencionado refere-se á caridade em geral, aquilo que se faz sem implicar preços ou troca monetária.
Isso em nada contradiz nem sequer o suposto atomismo liberal individual quanto mais uma visão comunitarista/descentralizada do liberalismo.
Seja … Mas vão ser necessarias muitas explicações e interpretações como estas … porque tenho a impressão (estarei enganado ?) que o efeito junto da opinião publica deste tipo de documentos e deste tipo de discurso por parte da Igreja Catolica … é mais o de uma critica do liberalismo, da economia de mercado, do capitalismo, da globalização,… do que propriamente um reconhecimento de que a doutrina da Igreja, incluindo a “responsabilidade social”, pressupõe a autonomia individual e não é incompativel com o mercado.
é mais o de uma critica do liberalismo, da economia de mercado, do capitalismo, da globalização
Fernando, sendo isso verdade, também é que a Igreja não tem (ou não devia ter) que preocupar-se como vai ser interpretada pelos Galambas da Terra, apenas com a interpretação dos Fiéis. A Igreja não fala (ou não devia falar) o newspeak do tempo. Palavras como Verdade, Caridade, Solidariedade, etc, têm um significado preciso que já dura há dois mil anos (especialmente a primeira) e que não tem nada que ver com as (in)significâncias que lhe atribuem os idiotas de cada época. Na minha opinião intelligentze as tentativas de interpretação das Encíclicas à luz da Teoria da moda são ridículas. Sabendo pouco, sei que o Reino da Igreja não é deste Mundo, mesmo que eu não acredite na existência desse outro onde ela reina.
Helder,
Longe de mim uma qualquer perspectiva anti-clerical e anti-catolica.
Também não discuto o significado preciso e profundo da mensagem da Igreja, que está certamente para além (ou aquém ?) dos problemas comezinhos deste mundo.
Reconheço que o cristianismo desempenhou um papel importante na formação de uma visão do mundo centrada na autonomia individual e consciente da sua limitação e imperfeição (perante a plenitude e a perfeição de Deus, naturalmente … mas também face às utopias construtivistas terrenas !…).
Fossem assim todos os criticos do liberalismo e do capitalismo !…
Confesso que terei de consultar directamente e lêr com atenção o que foi escrito nesta Encíclica, que me chegou apenas pelo que apareceu nalguns médias .
Para já, e como referi, a impressão que me ficou é a de que esta mensagem do Papa e da Igreja não se queda apenas por reflexões relativas à espíritualidade dos seus fieis e à necessidade de uma maior ética e responsabilidade social dos indivíduos e das organizações nos assuntos deste mundo terreno.
Pareceu-me que foi mais longe e que de algum modo entrou na temática ideológica relativa às formas de organização e governação das sociedades não se coibindo desta vez de utilizar argumentos e termos habitualmente empregados pelos críticos e opositores do liberalismo e da economia de mercado.
Nada disto seria surpreendente, ou sequer chocante. A Igreja é feita por homens e para homens, e não seria nem a primeira nem a última vez que tal aconteceria.
Mas, se assim é, então eu diria que os nossos amigos da Igreja, ao descerem à terra da política e da ideologia, deram um valente “beliscão” na pele do liberalismo.
E acrescentaria que, nesta eventualidade, os liberais, respeitando naturalmente o lugar e o papel da Igreja nos assuntos espirituais e terrenos, não deveriam fazer de conta de que não é nada com eles e voltar a cara para o lado !…
“as tentativas de interpretação das Encíclicas à luz da Teoria da moda são ridículas”
Excelente! Pena que a maioria dos seres pensantes ainda não tenha percebido isso. O pensamento “politicamente correto” talha o pensamento livre.
“então eu diria que os nossos amigos da Igreja, ao descerem à terra da política e da ideologia, deram um valente “beliscão” na pele do liberalismo.”
Deram? Mas quer algo mais liberal que a Igreja Católica? Ou será que o significado da palavra agora mudou?
Fui ver o significado da palavra só por descargo de consciência… Fiquei mais descansado
liberal
adj. 2 gén.
adj. 2 gén.
1. Partidário da liberdade.
2. Amigo de dar, generoso.
3. Próprio da liberdade ou das pessoas livres.
4. Diz-se das artes que requerem estudo e aplicação da inteligência (em oposição a mecânico).
5. Diz-se das profissões que se obtêm por meio do estudo.
s. m.
6. Aquele que professa opiniões liberais.
6. Jorge : “Mas quer algo mais liberal que a Igreja Católica? Ou será que o significado da palavra agora mudou?”
Definições da palavra “liberal” há muitas !..
Aquela que o Jorge transcreve tem varias vertentes.
Algumas, em particular o “amigo de dar, generoso”, podem aplicar-se fácilmente ao que representa a Igreja Catolica.
Outras, como “partidario da liberdade” e “aquele que professa opiniões liberais”, são algo mais discutiveis.
Outra definição, tirada de um dicionário enciclopédico, diz que “liberal” é “um partidario do liberalismo” e define “o liberalismo” como sendo “o conjunto das doutrinas que tendem a garantir as liberdades individuais na sociedade”.
De facto o significado da palavra mudou com o tempo.
Uma definição dita “moderna” apresenta “o liberalismo” “em oposição ao estatalismo e ao socialismo” e como sendo “a doutrina que sustenta que a liberdade económica, a livre iniciativa empresarial, não deve ser limitada”. As palavras associadas são “capitalismo” e “individualismo”.
Não creio que estas definições mais modernas representem o pensamento e a mensagem da Igreja Católica.
De resto, nem têm de representar.
A Igreja Católica não é uma realidade “liberal” no sentido moderno e corrente.
Nem eu pretendo ou desejo que o seja.
A Igreja Católica é o que é, os liberais são o que são !
Diferentes, com papeis distintos, com modos de pensar não coincidentes.
E é bom e salutar que assim seja e que assim continue a ser.
A única coisa que eu digo é que quando a Igreja Católica questiona o liberalismo e alguns dos princípios que lhe são póprios (como a liberdade económica, por exemplo), é natural e legítimo que os liberais respondam e, se for o caso, situem, desmontem e critiquem as suas teses e posições.
Foi algumas vezes o caso no passado, com outros Papas e outras Encíclicas.
Será agora o caso com o actual Papa e com a última Encíclica ?
Há quem pense que não há razões para tal. É o ponto de vista defendido pelo autor do Post e por alguns dos comentadores.
Mas também já vi outros comentários “liberais” que consideram que, “grosso modo”, a Encíclica não se afasta de uma posição crítica mais ou menos equidistante relativamente tanto ao capitalismo e ao liberalismo como ao socialismo e ao marxismo.
Tudo isto deve ser verificado e comprovado analizando e interpretando o documento.
Mas se porventura for assim não vejo porque é que os liberais se deveriam demitir de um debate franco e construtivo com a Igreja Católica e com aqueles que se identificam com as suas posições !
Quem escreveu ?…
36. A actividade económica não pode resolver todos os problemas sociais através da simples extensão da lógica mercantil. Esta há-de ter como finalidade a prossecução do bem comum, do qual se deve ocupar também e sobretudo a comunidade política. Por isso, tenha-se presente que é causa de graves desequilíbrios separar o agir económico — ao qual competiria apenas produzir riqueza — do agir político, cuja função seria buscar a justiça através da redistribuição.
Como interpretar ?…
25. Do ponto de vista social, os sistemas de segurança e previdência — já presentes em muitos países nos tempos de Paulo VI — sentem dificuldade, e poderão senti-la ainda mais no futuro, em alcançar os seus objectivos de verdadeira justiça social dentro de um quadro de forças profundamente alterado. O mercado, à medida que se foi tornando global, estimulou antes de mais nada, por parte de países ricos, a busca de áreas para onde deslocar as actividades produtivas a baixo custo a fim de reduzir os preços de muitos bens, aumentar o poder de compra e deste modo acelerar o índice de desenvolvimento centrado sobre um maior consumo pelo próprio mercado interno. Consequentemente, o mercado motivou novas formas de competição entre Estados procurando atrair centros produtivos de empresas estrangeiras através de variados instrumentos tais como impostos favoráveis e a desregulamentação do mundo do trabalho. Estes processos implicaram a redução das redes de segurança social em troca de maiores vantagens competitivas no mercado global, acarretando grave perigo para os direitos dos trabalhadores, os direitos fundamentais do homem e a solidariedade actuada nas formas tradicionais do Estado social. Os sistemas de segurança social podem perder a capacidade de desempenhar a sua função, quer nos países emergentes, quer nos desenvolvidos há mais tempo, quer naturalmente nos países pobres. Aqui, as políticas relativas ao orçamento com os seus cortes na despesa social, muitas vezes fomentados pelas próprias instituições financeiras internacionais, podem deixar os cidadãos impotentes diante de riscos antigos e novos; e tal impotência torna-se ainda maior devido à falta de protecção eficaz por parte das associações dos trabalhadores. O conjunto das mudanças sociais e económicas faz com que as organizações sindicais sintam maiores dificuldades no desempenho do seu dever de representar os interesses dos trabalhadores, inclusive pelo facto de os governos, por razões de utilidade económica, muitas vezes limitarem as liberdades sindicais ou a capacidade negociadora dos próprios sindicatos.
Como João XXIII no seu tempo, Bento XVI considera agora necessaria “uma verdadeira Autoridade política mundial” e “um governo da economia mundial, para sanar as economias atingidas pela crise” …
67. Perante o crescimento incessante da interdependência mundial, sente-se imenso — mesmo no meio de uma recessão igualmente mundial — a urgência de uma reforma quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitectura económica e financeira internacional, para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações. De igual modo sente-se a urgência de encontrar formas inovadoras para actuar o princípio da responsabilidade de proteger [146] e para atribuir também às nações mais pobres uma voz eficaz nas decisões comuns. Isto revela-se necessário precisamente no âmbito de um ordenamento político, jurídico e económico que incremente e guie a colaboração internacional para o desenvolvimento solidário de todos os povos. Para o governo da economia mundial, para sanar as economias atingidas pela crise de modo a prevenir o agravamento da mesma e em consequência maiores desequilíbrios, para realizar um oportuno e integral desarmamento, a segurança alimentar e a paz, para garantir a salvaguarda do ambiente e para regulamentar os fluxos migratórios urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial, delineada já pelo meu predecessor, o Beato João XXIII.
Fernando S
O princípio da subsidiariedade faz parte integrante desta proposta de um re-“ordenamento político, jurídico e económico que incremente e guie a colaboração internacional para o desenvolvimento solidário de todos os povos” – e, do ponto de vista da liberdade, isso muda muita coisa!
mj,
Efectivamente :
“67. A referida Autoridade deverá regular-se pelo direito, ater-se coerentemente aos princípios de subsidiariedade …”
Mas também é dito que esta autoridade politica global deve :
a) resultar “de uma reforma quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitectura económica e financeira internacional” procurando-se igualmente “encontrar formas inovadoras para actuar o princípio da responsabilidade de proteger [146] e para atribuir também às nações mais pobres uma voz eficaz nas decisões comuns” ;
b) operar “para o desenvolvimento solidário de todos os povos … para sanar as economias atingidas pela crise de modo a prevenir o agravamento da mesma e em consequência maiores desequilíbrios, para realizar um oportuno e integral desarmamento, a segurança alimentar e a paz, para garantir a salvaguarda do ambiente e para regulamentar os fluxos migratórios”.
São intenções e objectivos à partida certamente louvaveis.
Acontece que, em geral, os liberais tendem a desconfiar deste tipo de discurso e de propostas.
Que, convenha-se, se aproximam bastante de perspectivas políticas e ideológicas mais favoráveis a soluções iliberais, isto é, que passam por uma maior intervenção na economia e nos mercados por parte de instâncias governamentais e estatais, sejam elas nacionais ou internacionais.
São estas mesmas áreas iliberais que actualmente mais fortemente defendem um reforço do papel da ONU e uma maior influência institucional dos países ditos do “terceiro mundo”. Porque sabem que, por diferentes razões, as orientações dominantes nos governos destes países tendem a favorecer uma politica económica ainda mais intervencionista e redistributiva à escala mundial.
Ninguém, incluindo os liberais, é contrário aos objectivos gerais enunciados na Encíclica, nomeadamente os relativos ao saneamento das crises económicas, ao desenvolvimento equilibrado de todos os povos, à paz e ao desarmamento, à segurança alimentar, à defesa do ambiente, ao equilíbrio das migrações.
(E muitos outros poderiam ser acrescentados … Mas porque é que se insiste tanto em objectivos gerais que são reconhecidos e aceites concensualmente por todos ?!…).
A Encíclica parece alinhar-se pelas posições daqueles que consideram que estes objectivos se realizam sobretudo através políticas mais intervencionistas decididas e coordenadas por uma espécie de governo mundial.
Normalmente os liberais tendem a não concordar com esta via e a considerar antes que os mesmos objectivos podem ser alcançados com menos intervencionismo estatal, desenvolvendo e aprofundando a economia de mercado, com mais liberdade económica e mais concorrência.