A reabilitação da Europa

A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa, frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra (…). Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado de Nova Orleães. Desenha-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da “ideia de Europa”.

George Steiner.

Durante a minha visita a Bruxelas, em meados deste mês, recordei-me de George Steiner. Steiner é daqueles europeus que já não existem. Dos que desapareceram com as atrocidades das guerras que marcaram os nossos avós. Judeu, nascido em Paris e filho de Austríacos fugidos de Viena, nos anos 20. Um homem nascido num tempo em que os europeus se passeavam pela Europa, sem ser em turismo, nem em trabalho; num tempo em que a Europa era povoada por várias raças, constituída por diferentes etnias, religiões e credos. Num tempo de diversidade. Nós já não o sentimos, ou nem o conseguimos saber, mas a Europa até ao século XX, além de vários estados e nações tinha, acima de tudo, cidadãos que se misturavam, deambulavam pelos países e não se agarravam necessariamente a um deles. Diplomatas que amavam o país estrangeiro onde viviam e generais que comandavam exércitos inimigos. Cidadãos que tinham a sua nacionalidade é certo, mas que se distinguiam com um espírito europeu que os aproximava a todos. Houve um tempo em que o nacionalismo ainda não tinha deixado as suas marcas e uma certa ideia de Europa ainda existia. Nós já pouco sabemos disto, embora, quando no centro da Europa, em qualquer cidade deste continente, ainda conseguimos sentir que outros povos estão ali perto, que um pouco de silêncio quase nos permite escutá-los, ouvir o barulho proveniente da sua labuta diária. Que de Bruxelas a Berlim é um passo, que Paris está mesmo ao lado e Amesterdão nem fica assim tão longe.

Esse espírito europeu, esse cosmopolitismo muito próprio, praticamente desapareceu com a segunda guerra mundial. Steiner é dos poucos que resta de um modelo que marcou regras e foi frutuoso. O modelo das grandes ideias humanistas como ponto fulcral da cultura europeia, como única forma de evitar a violência e as ditaduras. De tal modo assim é que foi destruindo as elites culturais, que o nazismo e o comunismo se impuseram na Europa. A cultura europeia, cosmopolita, diversificada, multi-linguística, com a sua ideia de liberdade, a sua ideia de Europa, não tem lugar num mundo onde impere o medo e a violência.

George Steiner proferiu em 2004, uma palestra publicada neste pequeno livro, sobre a memória da Europa. Ele chama-lhe Ideia. Fala-nos de um sentimento, uma percepção, que nos devemos esforçar por recuperar e que, enquanto eu passeava pelo corredores do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia, senti ser indispensável utilizar na construção daquilo que é a génese do projecto europeu: Uma união de estados livres e de mercados abertos. A Europa que é o único continente sem grandes barreiras naturais, totalmente humanizado, onde não há natureza virgem, nem selvagem. A Europa como um local domesticado, precisa do espírito que Steiner nos conta ter existido outrora.

Todas as memórias são boas e más. Mas de todas podemos retirar lições para que não se cometam os erros do passado. Bem sei que se trata de uma ideia elitista, mas como o próprio George Steiner nos diz, ser elitista é “assumir a responsabilidade pelo melhor do espírito humano”. Ser elitista significa “ser respeitador”. Do passado e das nossas fundações para o futuro.

Quando votar para o Parlamento Europeu, vou com este livro debaixo do braço.

5 pensamentos sobre “A reabilitação da Europa

  1. Luís Lavoura

    “o projecto europeu: Uma união de estados livres e de mercados abertos”

    Eu substituiria a palavra “estados” pela palavra “pessoas”.

  2. Luís Lavoura

    “Houve um tempo em que o nacionalismo ainda não tinha deixado as suas marcas e uma certa ideia de Europa ainda existia.”

    Acho perfeitamente ridículo identificar o tempo entre as duas guerras como um tempo “em que o nacionalismo ainda não tinha deixado as suas marcas”.

    Hoje em dia há muito menos nacionalismo do que então. As pessoas de diversas nacionalidades são muito menos desconfiadas umas das outras do que então.

  3. JFM

    Caro André Abrantes Amaral,

    Numa palavra:
    EXCEPCIONAL (o seu texto e o George Steiner). Acho que lhe copiarei o gesto de levar “A Ideia de Europa” debaixo do braço para o voto nas europeias…

    Um abraço,

  4. lucklucky

    O Nazismo e o Comunismo também são cultura e são produto da cultura europeia, cosmopolita, diversificada.

    “A cultura europeia, cosmopolita, diversificada, multi-linguística, com a sua ideia de liberdade”,

    É uma cultura muito limitada não incluí a presença do Mal. Esse tipo de cultura Europeia era hedonista, bastou chegar um gangue organizado e destruíu-a num ápice. Como uma das faces do Romântismo: entraram em negação e fizeram de conta que o Mal não existia, foram destruídos pela outra face do Romântismo, aqueles que se dedicaram de alma e coração a expurgar o mal da Sociedade: Comunistas e Nazis, qualquer deles acharam e ainda acham possível eliminar o Mal.

    O abandono da religião no Ocidente acabou com o dualismo Bem-Mal como algo perene, permanente para todo o sempre, na religião cristã até ao Juízo Final.
    Ora isto é tudo ao contrário do que a sabedoria da Religião desde os Gregos e Romanos com a dualidade dos seus Deuses até aos Cristãos nos ensina, a dualidade na vida. O Mal está sempre presente, é indestrutível e é muito melhor se o não negarmos e o seu combate é essencialmente individual-até as religiões que se esqueceram dessa dualidade se tornaram momentâneamente no mal quando quiseram expurgar o mal e purificar-se. Tal como os Romànticos Comunistas e Nazis quiseram combater o mal e tornaram-se no próprio mal.

    É este o problema do Ocidente, ainda acha que consegue expurgar o mal. Exceptuando os EUA que resistem mal com uma Constituição feita por homens religiosos onde a dualidade e a presença do mal está sempre presente nos Checks-and-Balances. A União Europeia é mais uma ideia Romântica que se vai tornar no Mal. Porque tal como o Nazismo e Comunismo pensa que o Mal pode ser abolido, neste caso se destruir as nações Europeias.
    Outra face contemporânea são os grupos diversos grupos ambientalistas, românticos que não podem viver com o Mal mas que já perceberam que enquanto houver Homem haverá Mal e por tal razão querem simplesmente acabar com os Humanos.

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