Ora laicidade não é a simples separação entre a administração do Estado e a Igreja Católica (ou qualquer outra organização religiosa), mas também, a distinção entre regras legais universais, para toda a populações e a moral que cada religião recomenda aos seus fiéis.
[…]
Não deve contudo, num Estado de Direito laico, desejar impor [a Igreja Católica] pela força da lei a sua moral particular, aos seus fiéis, a todos os cidadãos que praticam outras religiões, ou aos que não têm qualquer religião. Isto se deseja ser vista como uma entidade respeitadora da democracia e da liberdade.
[…]
O MLS considera por isso que chegou a altura de a Igreja Católica, mantendo o seu direito a recomendar aos seus fiéis as práticas comportamentais que considera mais adequadas, aceitar que vive num estado laico e que não compete às organizações religiosas determinar ou influenciar a orientação de voto dos seus fiéis. Inclusivamente, porque essas mesmas organizações religiosas são financiadas pelos impostos de todos os cidadãos e não devem por isso, relativamente a temas relacionados com os direitos, liberdades e garantias, adoptar opiniões de carácter político a apelar à discriminação de alguns cidadãos.
O último comunicado da Associação república e laicidade do Movimento Liberal-Social é um útil documento para descodificar o discurso laicista que vai sendo colado de forma avulsa às mais diversas iniciativas progressistas e às causas fracturantes que têm animado a última legislatura, patrocinadas pela generalidade dos partidos de esquerda e de extrema-esquerda e por associações da sociedade civil na sua esfera de influência. É também útil para esclarecer a duplicidade de critérios com que é avaliado o papel social e a liberdade associativa e de expressão da ICAR quando confrontado com as outras referidas associações.
O primeiro argumento é o da contraposição de “regras legais universais” com “a moral que cada religião recomenda aos seus fiéis”. Ora a distinção é particularmente bizarra quando o Direito, e nomeadamente o direito criminal, são o território por excelência da Moral e representam, em última instância, o verter em forma de lei e de procedimentos – no nosso sistema de uma forma democrática – daqui que se espera ser o mais aproximado da Moral professada por um determinado povo. Acreditar que é possível separar a Moral estabelecida que tenha uma fundamentação religiosa, de uma suposta “moral universal” – obviamente laica -, e principalmente que os caros associados do MLS conseguirão sequer elencar essas “regras legais universais”, de forma bem explicadinha, clara, e demonstrando a sua aceitação universal, é na minha opinião impossível e a ter sucesso garantirá certamente uma cátedra em Direito ou Filosofia aos que o conseguirem.
O segundo argumento é de que a Igreja Católica “impõe por força de lei” a sua moral “particular” a todos os cidadãos. Está mais uma vez, na minha opinião o MLS seriamente equivocado. A ICAR não tem poder legislativo. Quem legisla e impõe leis sobre os indivíduos, e quem tem o poder coercivo de as fazer cumprir é o estado. Aliás, não consta sequer que a Igreja Católica ocupe algum lugar na Assembleia da República, ou sequer que algum dos seus membros seja padre, o que não seria aliás ilegal nem ilegítimo.
Quem aprova as leis sãos os deputados para o efeito eleitos pelos cidadãos eleitores, no seguimento do normal funcionamento do regime democrático. A decisão de lá colocar deputados laicos ou que professem ou sejam conotados com uma determinada religião é uma decisão livre de todos os eleitores, que neles se sentirão representados. O processo de decisão e escolha é inteiramente laico, e não existe nenhum mecanismo de privilégio em relação a nenhuma religião. São essas as regras do jogo.
O que o MLS não pode estar à espera é que os deputados não votem nem defendam ou proponham posições ajustadas ao seu posicionamento moral. Aliás, assim como o MLS defende um posicionamento “laico” em relação às mais variadas situações, outros – com a mesma legitimidade – defenderão pontos de vista contrários. Chama-se a isto, para o bem ou para o mal, Democracia, e não há nada que seja beliscado na orgânica laica do funcionamento do estado.
Afinal, assim como o MLS não gosta que sejam “impostas por via de lei” concepções morais a pessoas que não as partilham, quando estas só lhes dizem a si respeito e não se impõem sobre terceiros, o mesmo MLS não teve problemas em promover e congratular-se com o “impor por via de lei” das suas próprias concepções morais, naturalmente profundamente laicas.
O derradeiro argumento é de que estamos “num estado laico”, e como tal não compete a “organizações religiosas” influenciar o voto dos seus fiéis, ainda mais quando “recebem dos nossos impostos”, nomeadamente em questões de “direitos, liberdades e garantias”.
Num estado laico não existem “organizações religiosas”. Existem associações, fundações, movimentos e agremiações de pessoas que exercem a sua liberdade de associação. Aceitar que o objecto social dessas organizações possa legitimar ao estado limitar a sua liberdade de expressão, beneficiar uns e penalizar outros, parece-me profundamente criticável e errado. O próprio facto de receber subsídios (“receber dos nossos impostos”) ou de beneficiar de outros modos equivalentes em termos de benefícios de estatutos de tratamento especial do estado, como por exemplo a declaração de utilidade pública ou o estatuto de IPSS também não deve ser um factor limitador do usufruto dessas liberdades.
Aliás, o próprio MLS parece pensar assim.
Afinal, ainda há pouco tempo, o próprio MLS associou-se a um variado número dessas organização, algumas que recebem dinheiro dos nossos impostos e gozam dos mais variados estatutos especiais, para promover o voto no “Sim” numa questão claramente moral (muitos diriam que é uma das principais questões desse foro) e que interfere com direitos, liberdades e garantias como é a questão do aborto. Promove até actualmente uma outra causa de imposição por forma legal, também do domínio dos direitos, liberdades e garantias, de um regime que promove discricionariamente um determinado grupo de indivíduos, omitindo outros e conferindo-lhes direitos à custa dos impostos de todos, causa também suportada pelas mais diversas organizações, muitas delas recebendo financiamento público.
Afinal como ficamos? Temos associações pagas pelos nossos impostos a defender justamente e no exercício das suas liberdades posicionamentos morais, e queremos impor por via legal que umas devam ficar caladas e que outras estejam a agir “muito bem” de acordo com as causas que suportamos?
Pequenas causas pessoais dá nisto. O MLS é uma organização que se limita a reflectir os egos dos seus membros mais influentes. São pessoas que acham que quando a sociedade não lhes agrada, é a sociedade que se deve adptar aos seus egos e não os seus egos à sociedade.
O MLS é mais um movimento que surgiu para defender que um homem de voz grossa esteja na cama com outro ser peludo. De resto, as suas posições pecam sempre pela análise superficial das coisas. São mais uns a dizer “eu é que sou o liberal”.
Outro caso de uma opinião de quem acha que deve ser a sociedade a adaptar-se ao seu ego:
http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/162765.html
“São pessoas que acham que quando a sociedade não lhes agrada, é a sociedade que se deve adptar aos seus egos e não os seus egos à sociedade.”
ver o JM a dizer isto, faz-me sorrir…;)
Curioso, em tempos até os corpos sociais do S.L.Benfica quase deram uma orientação de voto aos sócios e simpatizantes (recordam-se da questão do financiamento do estádio?), todos os grupos e instituições o fazem, mas para certas pessoas apenas a ICAR está proibida de tentar influenciar os seus fiéis. Para cúmulo são incoerentes, porque se a ICAR deixou de ser a Igreja oficial do Estado, pode permitir-se a posições que institucionalmente não deveria tomar, mas pelos vistos os jacobinos, cegos pelo ódio que destilam, continuam a ser os maiores defensores do regresso ao passado. A questão é o casamento gay, pois no PS o assunto é tudo menos pacífico:
http://dn.sapo.pt/2009/02/13/nacional/aparelho_ps_reservas_casamento_gay.html
E conhecendo como conheço o Alentejo, diria que o eleitorado do PCP também não será muito sólido a seguir a orientação do camarada Jerónimo. Por mim, venha o referendo.
João Luís Pinto
Totalmente de acordo. É o “laicismo militante” em acção. E é importante ir desmontando esta sistemática invasão, e tentativa de controle, da liberdade de pensamento e de opção por valores, que se iniciou com este governo. Até com os capelães nos hospitais implicaram…
Quanto a este MSL: o próprio teor do documento, as ideias que defende, e os argumentos que apresenta, já nos deviam colocar a todos de sobreaviso: é inadmissível numa verdadeira democracia. De facto, a sociedade portuguesa tornou-se amorfa, acrítica, aceita discursos destes como “naturais”. E isso é preocupante.
A minha convicção é que esta ostensiva agressividade, numa altura em que estamos numa fase tão frágil, vai ser percebida pelos cidadãos como, essa sim, uma falta de respeito por quem paga impostos e aguenta o barco à tona.
Por mim, neste momento estou é com alguma curiosidade em ver a reacção do Papa, que já teve alguma dificuldade em “engolir” esta fórmula tão portuguesa do “católico não praticante” – o que prova que há uma dimensão criativa na nossa prática religiosa -, como vai agora “engolir” esta clara hostilidade à nossa cultura de raízes cristãs e esta tentativa de “evangelização laica” para a aceitação conformista (ou conformada) das inovações que nos andam a preparar…
Cumprimentos
Ana
Quando cada vez mais coisas passam para a esfera política, ou seja quanto mais a política é totalitária mais qualquer organização qualquer que ela seja não só se pode pronunciar como tem o dever pronunciar-se sobre a política.
No entanto tenho fraca esperança que a Igreja portuguesa tanho tirado as devidas conclusões do colaboracionismo com socialismo.
“No entanto tenho fraca esperança que a Igreja portuguesa tanho tirado as devidas conclusões do colaboracionismo com socialismo.”
Caro lucklucky
Eu não tenho nenhuma.
Se no caso do aborto, que já se sabia que o PS iria legalizar nesta legislatura, e é um assunto bem mais grave, a Igreja não fez nada (que se visse), porque é que haveria de fazer alguma coisa neste assunto de treta.
A ver vamos se nas próximas listas do PS, não vão continuar a existir deputados “católicos”…
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Caro JLP
Concordo inteiramente com o seu post.
No entanto há uma coisa que me incomoda.
Já devia ser do conhecimento comum, esta “técnica” de Sócrates e do PS, de quando se vê apertado, lançar “sound bytes”, para entreter o pessoal.
Isto do “casamento” dos gays é mais um.
E toda a minha gente cai na ratoeira, e para meu espanto até a Igreja.
Ora se a Igreja acha (e bem), que há problemas mais graves no País, então devia especialmente falar deles e não de “fair divers”, contribuindo para o “ruído de fundo”.
Além do mais como disse o VPV hoje na TVI, se a Igreja não reconhece nenhum tipo de casamento exclusivamente civil, porque é que se há-de preocupar com um tipo em especial.
A Igreja, se quisesse mesmo fazer alguma coisa quanto a este assunto, podia antes “avisar” o Estado Português, que caso a legislação portuguesa passasse a titular como casamento, um contrato, que ela Igreja considera impróprio, isso seria um desrespeito à Concordata, pelo que os Casamentos Católicos deixariam de ter efeitos civis.
Gostava de ver quantos Católicos se dariam ao trabalho de se ir “casar” pelo civil, nessas circunstâncias.
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“O próprio facto de receber subsídios (”receber dos nossos impostos”) ou de beneficiar de outros modos equivalentes em termos de benefícios de estatutos de tratamento especial do estado, como por exemplo a declaração de utilidade pública…”
Eu gostava que me indicassem um caso em que a Igreja receba algum dinheiro do Estado que não seja para actividades assistenciais que deveriam ser da competência do próprio Estado.
Aliás, ao que julgo saber, a falta de regulamentação de alguns aspectos da Concordata, impedem que a Igreja seja um sujeito passivo de IVA, o que quer dizer, que em tudo o que compra, (com o dinheiro dos donativos dos Católicos) mesmo para fins assistenciais, nunca recupera o IVA.
Ou seja o Estado factura IVA na Caridade Católica.
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“Eu não tenho nenhuma.”
Eu também não.
Muito bom post. Subscrevo.
Caro João Luís
Permita-me discordar do primeiro ponto da sua argumentação, expressando, no entanto, a minha concordância quanto aos restantes:
Em primeiro lugar, a ideia de que o povo professa uma moral. Ora o povo não constitui uma entidade homogénea. É constituído por indivíduos, que singularmente ou em grupo, possuem modos e estilos de vida muito diversificados. O estado não pode deste modo legislar admitindo apenas uma única moral, sob pena de ser tornar intolerante e discriminatório. A única referência que mais se aproxima da pretendida universalidade, necessariamente laica, é a Declaração universal dos Direitos do Homem. Daqui decorre que face de dinâmicas sociais que põe em causa os valores predominantes, o Direito não pode recorrer à moral decorrente da doutrinação religiosa, mesmo sob o argumento de tradição, competindo-lhe isso sim interpretá-las à luz da Declaração, quer para sancionar quer para admitir determinado tipo de comportamentos.
– Se determinadas das chamadas causas fracturantes, como o aborto, colocam a discussão nos limites dos direitos consagrados na Declaração Universal, nomeadamente o artigo 3º, já a questão em apreço, não colide em meu entender, com nenhuma das suas normas. Ora do ponto vista laico o casamento é acima de tudo um contrato entre duas partes que o assumem livremente e conscientes das obrigações e direitos decorrentes, através do qual se regulam as questões pertinentes da potencial conflitualidade que possa emanar do referido, como por exemplo o património ou a paternidade. Ora a consagração legal do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, vem a reboque do reconhecimento da liberdade de opção e prática sexual, de que a união entre pessoas do mesmo sexo constitui um direito e de que a lei deve equipar as obrigações e direitos do casamento civil a estas uniões.
Por último aquilo que me choca, mais do que a lei em si que considero irrelevante e inócua, é a instrumentalização torpe e hipócrita desta bandeira social para fins puramente eleitorais, um piscar de olhos ao eleitorado de esquerda na mesma linha da demagógica lei Robin Hood.
Caro Mentat,
«Além do mais como disse o VPV hoje na TVI, se a Igreja não reconhece nenhum tipo de casamento exclusivamente civil,»
Julgo que a Igreja reconhece, de algum modo, o casamento civil. Peço que me corrijam se estiver equivocado.
Duas pessoas casadas pelo civil não estão, aos olhos da Igreja, em situação ilícita, pelo menos enquanto houver coincidência entre os conceitos de casamento civil e religioso, que são, em Portugal, iguais em tudo menos na dissolubilidade: os deveres de coabitação, fidelidade, assistência são comuns a ambos, dada que o casamento civil procede do católico. Os actos próprios do matrimónio deste casal que não se “casou pela igreja” são, julgo eu, lícitos aos olhos da Igreja.
A Igreja istá-los-á a casar religiosamente apenas para que beneficiem da graça conferida pelo sacramento do matrimónio.
“Os actos próprios do matrimónio deste casal que não se “casou pela igreja” são, julgo eu, lícitos aos olhos da Igreja.”
Caro Luís Cardoso
Eu não sou especialista em nada destes temas, mas a ultima vez que vi o Catecismo (acho), a esse tipo de “casamento”, a Igreja chama concubinato, e aos Católicos nessas condições, está vedado, por exemplo, serem Padrinhos de Baptismo.
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Isto é muito português: dois não especialistas a falar de uma matéria altamente especializada…
Precisamos de uma intervenção divina, de um anjo para nos iluminar.
http://www.paroquias.org/forum/read.php?1,49922
“Isto é muito português: dois não especialistas a falar de uma matéria altamente especializada…
Precisamos de uma intervenção divina, de um anjo para nos iluminar.”
Caro Luís Cardoso
Para um Católico, o conhecimento do Catecismo não deveria requerer nenhuma especialização especial, devia ser uma obrigação.
Mas eu faço “mea culpa”, porque efectivamente não sou um “bom católico”.
Mas para si desejo que se o tal anjo o iluminar lhe dê alguma “caridade e humildade cristã”, porque (e isso eu fui confirmar) a soberba é um pecado capital.
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Caro Mentat,
Desculpe se o ofendi, mas foi V. que se disse não especialista na matéria; eu apenas me associei a si nessa categoria.
Agradeço os seus cuidados de direcção espiritual e prometo pensar neles no Exame de Consciência.
Cumprimentos,
“…eu apenas me associei a si nessa categoria.”
Agora sou eu que tenho de pedir desculpa pela soberba do meu comentário.
É que não percebi que era o mesmo “Luís Cardoso” porque o 1º não tinha link a azul e o segundo tinha.
Sendo a mesma pessoa, o seu comentário tinha toda a lógica e não merecia a minha resposta.
Mais uma vez as minhas desculpas.
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Caro Mentat,
Pelo conhecimento que tenho de si, adquirido através da leitura dos seus comentários nesta casa, estranhei a sua resposta.
Tudo se esclarece.
Cumprimentos,
Caro Cam,
Obrigado pelo link.
Confirmou, de algum modo, a minha suspeita de que a Igreja reconhece algum valor canónico ao casamento civil.
Confirma também a minha impressão de que esta matéria está para além dos ensinamentos do Catecismo e requer conhecimentos de Direito Canónico.
Cumprimentos,
Muito brevemente, que não há tempo para mais: o ponto central é que para a Igreja o essencial no casamento é o consentimento dado pelas partes (em condições válidas). O sacramento não é neste caso conferido pelo padre mas sim pelas próprias partes contraentes. As razões para a desejabilidade da celebração presencial em liturgia pública são fortes mas a sua ausência não coloca em causa a essência do sacramento (desde que haja mútuo consentimento e todas as restantes condições de validade se encontrem reunidas).
Nesse sentido, o que tem valor não é tanto o “casamento” civil em si, mas o consentimento livre e válido (se for esse o caso) dado nesse âmbito ou em outro.
Infelizmente, em contextos jurídicos como o português impera a confusão, em parte pela lamentável submissão de boa parte das hierarquias da Igreja ao Estado.
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