Estado casamenteiro

A questão da família, do casamento e do casamento gay, instiga muitas e bravas discussões. Os posts d’O Insurgente sobre essas matérias são dos mais lidos e mais comentados.

A mim espanta-me que, mal se discuta estas matérias, alguém venha dizer que o direito a constituir família é constitucional e que o estado não pode impedir os gays de o terem. É notável, ainda que bastante coerente, que haja pessoas que igualem a sanção estatal duma relação (o contrato vulgarmente conhecido como casamento)  ao direito de constituir família (que a meu ver é completamente independente do casamento).

Sobre a matéria em particular (o casamento entre pessoas do mesmo sexo), tenho que confessar que não tenho opinião. Vejo bons argumentos de ambos os lados que discutem esta matéria, mas não me convencem. A minha abordagem à questão é completamente diferente. A minha posição é que o casamento não deveria estar sob alçada do estado nos termos em que está.

A união de pessoas numa célula familiar é anterior à existência de estado e até de religião. Na nossa civilização, apenas no Concílio de Trento (1563) ficou «the validity of marriage made dependent upon its being performed before a priest and two witnesses». Até lá, bastava uma declaração pública de intenções, o que era comum entre os romano, o que aliás continuou a ser o caso nos países protestantes – mas não por muito tempo.

Desta forma passou para a esfera pública uma matéria privada, e passou a ser o estado a regular as condições para que se realizasse matrimónio (recordo que falamos do tempo em que os povos eram convertidos à força na sequência das várias guerras religiosas, particularmente na zona do Sacro Império, e mudavam de religião com o seu monarca). Mas a nossa questão é aqui e agora, e não há quinhentos anos atrás. Hoje o casamento religioso não é mandatório para o reconhecimento do estado de interesses comuns. Assim sendo, vivo bem com as condições que a ICAR ou outras queiram impôr nas suas versões de casamento – quem aderir a uma confessão religiosa que se preocupe com os problemas do casamento segundo essa religião. O problema é que se duas (ou mais, já agora) pessoas quiserem entrar um contrato que regule matérias como direitos de sucessão, partilha de propriedade, etc, o estado não deixa. Ou melhor, deixa, mas só se os parceiros (obrigatoriamente dois e de sexos diferentes) escolherem uma das modalidades que o estado oferece.

Vale a pena perguntarmo-nos porquê. Independentemente de considerações morais, até porque – passando a redundância – eu não sinto moral para julgar a dos outros nestas matérias do amor, não se vê que mal poderá vir ao mundo de as pessoas que já podem viver juntas, possam assinar contratos que regulem algumas coisas (a de deixar herança parece-me fundamental, p.ex.). Esses contratos poderiam chamar-se casamento? Dificilmente, visto o casamento ser um tipo de contrato muito específico com milhares de anos de tradição, mas… Já se viu coisas mais estranhas acontecer.

Sendo assim, a fórmula que acho devia ser implementada, é a que retira ao estado o poder de legislar sobre este tipo de contratos. (Reparem que na actual situação, como se viu na recente questáo do divórcio, o estado quando legisla altera todos os contratos, mesmo os já em vigor, o que fragiliza a segurança de quem o assume. É claro que acontece o mesmo com os contratos de habitação, p.ex.) Os direitos sobre sucessão, partilha de propriedade, responsabilidades civis, tutoria na incapacidade, etc, passariam a residir junto dos indivíduos que deles dispunham para os partilhar em contratos como melhor entenderem.

O que prevejo que fosse acontecer, é que o casamento actual continuaria, de início a ser a forma tipicamente escolhida. Também os nichos (homossexuais, polígamos, etc.) veriam reconhecidos alguns direitos que não têm hoje. Mais cedo ou mais tardes as pessoas iriam experimentar outras formas de regular as cláusulas do casamento do que aquelas que o estado hoje oferece. A longo termo tenho a certeza de que uma esmagadora maioria das pessoas ficaria satisfeita com uma de relativamente poucas fórmulas de contrato, que se cristalizariam como as que mais sucesso e satisfação oferecem. Seriam muito diferentes do que os que temos hoje? Julgo que não, mas não o posso afirmar com certeza absoluta. A vantagem é que a qualquer momento um casal (ou qualquer grupo de pessoas) poderia experimentar um novo formato.

Quanto às objecções que prevejo gerarem maior relutância: A questão fiscal é facilmente resolvida se existisse uma flat tax. Cada pessoa representa um valor não-taxável no orçamento duma família e duma só (quem não souber do que se fala  poderá tentar começar aqui). Quanto aos filhos, estamos a falar de terceiros incompetentes e provavelmente cabe mesmo ao estado regular essa matéria.

22 pensamentos sobre “Estado casamenteiro

  1. Michael,

    o casamento gay do lado do lobi é uma questão de legitimação social, não é de direitos cívicos ou outros. O azar do caraças é que quando estiver generalizado, já o casamento civil deixou de ser fonte de legitimação social do que os homofilos imaginam que seja a família ou de seja o que for. Mas fica para tarde.

  2. Michael Seufert

    Completamente de acordo Hélder. Mas isso não muda o facto de algo estar mal na situação actual.

  3. André Azevedo Alves

    Não concordo com tudo, mas é um dos melhores posts sobre o tema que li nos últimos tempos.

    Infelizmente, a discussão (de um lado e do outro) não vai passar por aí…

  4. André Azevedo Alves

    “o casamento gay do lado do lobi é uma questão de legitimação social, não é de direitos cívicos ou outros.”

    Isso também é verdade e é um facto (muito) relevante, mas não invalida a meu ver o ponto principal do que escreveu o MS.

  5. Michael e André,

    não discordo do post, pelo contrário mas, cada vez mais me custa pensar o casamento (seja civil ou não) como um mero contrato. É muito mais que isso. Aliás não sei de outro em cujo enunciado esteja “até que a morte nos separe” (indissolúvel em vida, portanto) ou “na saúde e na doença” (independentemente das alterações futuras do “produto”).

    O interesse ou não da intervenção e regulação do casamento pelo estado é ainda uma outra questão.

    A questão dos direitos (sucessões por exemplo) parece-me pacífico e entendo que a discussão não pode manter-se nesse plano.

  6. Michael Seufert

    A minha questão é que não deve residir junto do estado a soberania sobre os direitos individuais de:
    partilhas de propriedade
    heranças
    tutelas na invalidez
    visitas hospitalares
    etc.
    etc.
    etc.

  7. Michael,

    concordo mas…

    deixa lá que sou só eu que tenho andado a pensar nisto e na próxima AGI talvez dê para falarmos do assunto. Apesar de tudo a coisa para mim parte daqui: o casamento faz parte de uma contrato (esse sim) mais vasto que engloba mortos, vivos e não-nascidos. Ou se discute por aqui ou, pelo menos eu, cada vez tenho menos vontade de me preocupar com isto e defender esta ou aquela opção. É recolher e hibernar.

  8. Michael Seufert

    Não te percebi bem Hélder.
    Para mim, já agora, o casamento é uma instituição que o estado açambarcou para a sua esfera. A ICAR, aliás, faz mal em obrigar ao registo civil de casamentos católicos. Há malta que vai a Espanha casar de propósito por causa disso.

  9. Carlos Duarte

    Ò Michael,

    Este assunto é um bocado problemático, porque, queira-se ou não, o aspecto moral entra sempre em jogo. Ou seja, a concepção “clássica” e que tem vigorado do casamento implica uma responsabilidade não só entre os contratantes (se olhar-mos como se for um contrato) mas entre estes e a sociedade em geral. E à falta de melhor, o representante da sociedade é o Estado (que se veio substituir aos representantes religiosos, no caso do casamento civil).

    O Estado tem interesse (apesar do que se tem ouvido por aí) na existência de um núcleo familiar forte, que lhe permite “aliviar” cargas desnecessárias (por mais “liberal” que se seja, não me parece que seja defensável que as crianças se criam e educam sozinhas!). Uma maneira de “garantir” esse núcleo é através de incentivos (negativos e positivos) à ideia da família nuclear, ou seja, em “troco” de estabilidade social, o Estado oferece benefícios aos nubentes, nomeadamente ao garantir estabilidade ao contrato (cada vez menos, ao que parece) e um conjunto de regalias em termos de herança, visitas hospitalares, regime fiscal (cá em Portugal tá um bocado “trocado”), etc.

    Pode-se defender que o Estado não se deve meter nisso. Não deve como não se deve meter no policiamento (as pessoas que se organizem em mílicias), nas forças armadas (idem), nas leis (as pessoas deviam ser “livres” de subscrever ou não um conjunto de leis. Na sua propriedade seriam senhores ilimitados) e por aí fora. É óbvio que isto redunda, levado ao extremo, na anarquia e na “lei do mais forte”. O ser humano não é perfeito e a sociedade, como produto de aglomerados humanos, ainda o é menos. Como tal existe sempre alguns sacríficios do indíviduo para permitir a existência de uma sociedade estruturada que garanta segurança, direito, etc. Se quiseres, é uma espécia de “seguro social” em que pagas “liberdade” em troco de paz de espírito no futuro.

    Como se tem visto por aí fora, a excessiva fragilização do casamento como contrato SOCIAL (e não meramente civil, entre duas pessoas) tem tido efeitos nefastos, principalmente no que diz respeito à formação das pessoas. A mim não me mete qualquer confusão a possibilidade da existência de um contrato entre duas pessoas que se assemelhe ao casamento. No entanto, e novamente levado ao extremo, porque é que eu, consciente e de são da cabeça, não posso assinar um contrato em que me comprometo a ser escravo de um terceiro a troco de dinheiro? Estas coisas não são preto e branco, como às vezes se vê por aí e como fica algo implicíto no teu post.

  10. 🙂

    Não te percebi bem Hélder.

    Eu sei. Entre outros talentos tenho este de ser um bocado confuso e ter dificuldade em fazer-me entender 🙂 Talvez dê para conversar mais tarde.

    A apropriação do casamento pelo estado é discutível e sobre a posição da ICAR não faço ideia do que motiva essa obrigação mas calculo que seja uma cedência/opção da mesma relacionada com a Concordata (aqui falo mesmo de cor, não faço a mínima ideia da razão e também ainda não pensei nisso)

  11. Exacto Michael. O caminho efectivamente progressivo é a abolição do estado civil. O Estado não tem nada a ver se eu me caso ou me deixo de casar. É uma questão da vida mais íntima das pessoas.

    Evidentemente, o Estado não pode ter qualquer tipo de interessa na existência ou inexistência de núcleos familiares mais fortes ou mais fracos. E, mais ainda, no estado actual da sociedade portuguesa já não se justificam medidas protectoras de uma das partes, as quais se encontram em clara situação de igualdade.

    Claro que entre as coisas como estão e o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo é menos má a segunda possibilidade. Mas continua a ser uma inadmissível intromissão do Estado na vida mais privada das pessoas (por essa razão e enquanto socialista e democrata me choca profundamente ver meus camaradas entusiasmadíssimos a dizerem que apoios à natalidade são uma medida claramente de esquerda, uma vez que tais medidas evidentemente consubstanciam a valoração pelo Estado de opções do mais íntimo e privado de cada um).

    Já agora. Esta questão do casamento de homossexuais das duas uma. Ou o problema são os efeitos sucessórios da coisa (quando a sucessão legitimária é algo de evidentemente inconstitucional, nem que seja por violar o princípio da proporcionalidade), ou, o que acho mais provável no imaginário e no inconsciente, por algo verdadeiramente arrepiante. E que é considerar-se o direito ao casamento com quem se ama com um dos direitos mais fundamentais. O que é aberrante.

  12. Michael Seufert

    Carlos, se a família como núcleo da sociedade for destruída, vai ser pelo estado fazer coisas a mais, e não a menos, acho. De resto o estatuto social duma relação cada vez menos tem que ver com o casamento.
    Pedro, concordo no geral. Particularmente que não existe uma espécie de direito fundamental ao casamento. O Hélder refere isso mais acima, tem que ver com a ilusão de que com o acesso ao casamento vem o reconhecimento social. Errado.

  13. Carlos Duarte

    Caro Michael,

    Não percebi agora, importas-te de dar um exemplo? Quanto ao estatuto social, não é uma questão de estatuto, mas uma questão de protecção das partes, especialmente das mais fracas.

  14. Relativamente a este último comentário repito: “no estado actual da sociedade portuguesa já não se justificam medidas protectoras de uma das partes, as quais se encontram em clara situação de igualdade”.

  15. Michael Seufert

    Carlos: uma coisa que facilmente mata a família como núcleo da sociedade, é por exemplo considerar que só existe direito à família, quando ela é sancionada pelo estado. Sócrates ontem disse isso para dar cavaco a MFL: “no meu partido é impossível dizer que a família tem como objecto a procriação.” Mas o que tem família que ver com casamento (civil)?

  16. Mas globalmente concordo. O casamento civil não faz sentido. É uma apropriação da vida privada por parte do Estado. Já agora, e por extensão ao que já disse, além dos “casamentos” gay, deveriam também ser possíveis os casamentos polígamos, políandros e até incestuosos. Afinal, desde quando o Estado tem de impôr uma moral?…

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