Nos dois últimos artigos de Rui de Albuquerque (1, 2) fica, quanto a mim, bem patente um dos grandes perigos que emerge da tese do direito natural como sustento de uma teoria liberal, e principalmente o quão perigoso é combiná-la, como é frequente, com a defesa da tradição como mecanismo validador de um determinado caminho evolutivo.
É que, sistematicamente, os defensores do direito natural passam de um discurso de descoberta de um ideal platónico, de caminhada para o enlightenment do que é ser Humano, para a concepção metajurídica expressa no primeiro artigo. Esse caminho é tão mais grave quando essa postura assume claramente como legítimo ir contra a própria vontade do indivíduo, a sua autonomia e a sua auto-determinação. Baseando-se numa proclamação de que “[h]á coisas que não se fazem”, subjuga-se um indivíduo, inicialmente pintado como sendo o pleno detentor dos referidos “direitos naturais” e decisor, na própria tese dos jusnaturalistas, da medida em que transfere ou não esses direitos para terceiros, ao entendimento de alguém que proclama as Leis escritas na pedra e o interrompe dizendo “alto que isto tem regras!” – afinal, que os interessados desconhecem e/ou não reconhecem como legítimas.
E sai, na tese exposta, para mim prejudicado aquele que é para mim o principal fundamento de uma teoria liberal: a ausência de coerção. Pois, a menos que defenda que a sanção para os comportamentos que define como “intoleráveis” seja social ou divina, e como tal essencialmente non sequitur, com certeza que defenderá que a sanção seja do domínio penal (por definição coerciva) ou pelo paradoxal estabelecer de danos que ambas as partes não reconhecem.
É que o mesmo juízo de tradição que permite a Rui de Albuquerque classificar como incompreensíveis à luz da tradição e da “selecção espontânea dos procedimentos mais convenientes à espécie” a série de actos que enumera (escolha-se como exemplo o “pontapear o primo paralítico”), não é muito distinto do que sustentou o atirar desse mesmo paralítico da Rocha Tarpeia, o envio para destino semelhante dos filhos menos capazes de Esparta, o suicídio dos velhos vikings sem esperança de morrer no campo de batalha ou a imolação das mulheres indianas nas piras fúnebres dos maridos. Também porventura nesses tempos terão sido invocados os mais altos desígnios e tradições imemoriais, nomeadamente quando era necessário contrariar a vontade dos intervenientes e exclusivos interessados, como agora porventura se defenderia invocar em sentido contrário.
Será bom que os liberais comecem a compreender que não existem regras escritas na pedra (que tardam a ser reconhecíveis), sob pena de se transformarem em ferramentas de coerção.
“E sai, na tese exposta, para mim prejudicado aquele que é para mim o principal fundamento de uma teoria liberal: a ausência de coerção”
Totalmente de acordo.
“E sai, na tese exposta, para mim prejudicado aquele que é para mim o principal fundamento de uma teoria liberal: a ausência de coerção.”
Discordo: podemos falar de minimização da coerção ou de subordinação do uso da coerção à aplicação da justiça, mas não – em sociedades humanas – da ausência da coerção.
“Nos dois últimos artigos de Rui de Albuquerque (1, 2) fica, quanto a mim, bem patente um dos grandes perigos que emerge da tese do direito natural como sustento de uma teoria liberal, e principalmente o quão perigoso é combiná-la, como é frequente, com a defesa da tradição como mecanismo validador de um determinado caminho evolutivo.”
Não me parece que a via consequencialista seja um bom caminho. É fácil apontar ao relativismo consequências desastrosas em tempo recorde.
“Discordo: podemos falar de minimização da coerção ou de subordinação do uso da coerção à aplicação da justiça, mas não – em sociedades humanas – da ausência da coerção.”
Acho que estamos essencialmente de acordo, e que a diferença é essencialmente semântica e passa por considerar-se ou não coercivo um acto praticado em alguém fruto de uma sua vontade livre anterior.
Um bocado a perspectiva de se o masoquista é ou não vítima de coerção do sádico… 😉
caros CN e Filipe Abrantes:
Se não se importarem, transfiro para esta caixa a resposta às vossas interpelações relativamente ao meu comentário sobre o “homicídio consentido”.
1) Vamos imaginar que, de facto, um homicídio é apenas um atentado contra um direito individual que apenas diz respeito à vítima. As consequências desta tese são múltiplas. Desde logo:
– Não se vê que a polícia possa deter o criminoso, desde logo porque o caso não diz respeito à comunidade, mas apenas à vítima, tendo essa apenas o direito de ser ressarcida dos danos (patrimoniais ou extrapatrimoniais) que sofreu. Por outras palavras, a comunidade não tem o direito de retirar a liberdade ao criminoso, porque não é vítima e a vítima também não tem o direito de fazê-lo, porque não é Estado e, como tal, não tem a necessária autoridade ou, para o efeito, capacidade. A ser essa a vossa solução também não percebo como resolvem a contradição entre a justiça privada – a poder ser exercida – com o liberalismo. O Estado – do ponto de vista liberal – existe precisamente para prevenir a autotutela, transferindo a resolução dos conflitos para um terceiro imparcial. Ora se as consequências de um crime forem apenas indemnizatórias, quem não tem património e, por isso não pode pagar, tem um enorme incentivo para cometer crimes, porque nunca sofrerá quaisquer consequências.
– Mesmo tratando-se de um criminoso reincidente, que muito provavelmente se porá a milhas ou matará de novo, não se pode prendê-lo. As razões de prevenção não dizem respeito à vítima, relacionando-se antes com a protecção da comunidade e de potenciais vítimas contra o agressor. Numa lógica em que apenas há que tratar dos direitos das vítimas actuais, não vejo como é possível argumentar no sentido de se justificar punir com pena de prisão – e, portanto, perda da liberdade ou, o que é dizer o mesmo, afastamento da comunidade – o homicídio, a violação, etc…
As questões são, portanto, muito concretas.
1) Como obrigam alguém que não tem património a não cometer crimes (a prisão está excluída pelas razões aduzidas)?
2) Como previnem crimes cometidos por criminosos de carreira, uma vez que não os podem prender e que sanções meramente indemnizatórias são muito menos dissuassoras, tanto mais que pode nem sequer haver património?
Ps: Quanto à eutanásia, caro Filipe, a sua gravidade não é comparável ao canibalismo, ainda que consentido. Esse tipo de valorações – grau de ilicitude e de culpa – só são possíveis num quadro em que a comunidade, através dos tribunais, tem algo a dizer sobre a forma como um criminoso deve ser punido. Na sua lógica, o homicídio da mãe que torturou o filho até à morte tem a mesma sanção que o condutor que não deu prioridade e atropelou um peão. Ambos têm de indemnizar e presumo que a indemnização seja a mesma, uma vez que todas as vidas têm igual valor. Certo?
“Na sua lógica, o homicídio da mãe que torturou o filho até à morte tem a mesma sanção que o condutor que não deu prioridade e atropelou um peão. Ambos têm de indemnizar e presumo que a indemnização seja a mesma, uma vez que todas as vidas têm igual valor.”
[A questão não é comigo, mas…] se o filho tiver sofrido mais (é bastante possível num caso de tortura até à morte) que o peão atropelado, é de esperar que a indemnização será maior, porque os danos foram maiores
“Na sua lógica, o homicídio da mãe que torturou o filho até à morte tem a mesma sanção que o condutor que não deu prioridade e atropelou um peão. Ambos têm de indemnizar e presumo que a indemnização seja a mesma, uma vez que todas as vidas têm igual valor.”
Têm o mesmo valor mas o crime é diferente: quem atropela por não dar prioridade mata por negligência, quem tortura+mata fá-lo conscientemente.
“1) Como obrigam alguém que não tem património a não cometer crimes (a prisão está excluída pelas razões aduzidas)?
2) Como previnem crimes cometidos por criminosos de carreira, uma vez que não os podem prender e que sanções meramente indemnizatórias são muito menos dissuassoras, tanto mais que pode nem sequer haver património?”
A questão era ética e não penal, ou seja, era saber o que era legítimo fazer. Mas quanto à punição, creio que um homicídio é um crime de tal forma grave que não penso que a vítima (ou família de) possa ser privada de uma compensação equivalente. A pena de morte (ou escravidão até que pague danos) deve poder ser uma opção. A lógica da dissuasão pode levar a que se ponha na prisão alguém por roubar um carro quando tal não se justifica a meu ver. Por isso ser mais correcta a lógica básica da restituição/compensação e da proporcionalidade. A lógica da reeducação também penso não fazer sentido: pagam todos durante décadas a reeducação de um assassino sem a menor garantia de não reincidência.
Dou-lhe de barato que aqui sim entramos na mera discussão abstracta. Em Portugal e na maioria dos sistemas jurídicos isto nem faz sentido nem é praticável hoje. Mas não é por isso que vou aceitar justo pôr-se na prisão durante 20 anos um assassino e aceitar que se ache um crime o canibalismo consentido.
De qualquer forma, a discussão sobre a justiça penal é estéril visto que o que é “justo” é aquilo que é redigido em colégio por deputados (o “legislador”).
O ponto inicial era se uma pessoa pode decidir o que fazer com o próprio corpo sem prejudicar terceiros. E o J.Barros apenas diz que o que prejudicar a comunidade deve ser censurado. É frágil como tese, penso. A sua via tem levado a que tudo seja entendido como prejudicando a comunidade (o tabaco, a droga, daqui a pouco o alcool, os maus costumes, etc).
Caro José Barros
Logo virei aqui assim que puder porque as questões são um desafio interessante e creio, têm resposta.
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Caro Filipe Abrantes,
Penso que não compreende o ponto.
1) O que eu digo é que se os crimes em geral não são mais do que uma ofensa às vítimas concretas, o Estado não tem legitimidade para intervir a não ser nos estritos limites em que se torna necessário obrigar o criminoso a lesar os danos sofridos pela vítima. Isto leva a acabar-se com o direito penal e a resolver tais conflitos através da responsabilidade civil. Mas esta é insuficiente para assegurar a dissuassão dos criminosos (em especial, daqueles que não têm património) e, sobretudo, a referida consequência lógica do seu raciocínio vai contra uma das funções essenciais num Estado Liberal que é a de proteger os seus cidadãos de ataques de terceiros. É, aliás, essa função que permite raciocínios como o de aplicar uma pena mais grave para o criminoso reincidente do que ao criminoso primário. Se se tratasse apenas de uma questão de ressarcir a vítima, os crimes (iguais) teriam de ser punidos com a mesma pena. Ou seja, o Filipe Abrantes não gosta que o direito penal seja um direito público, mas a verdade é que para o Estado liberal poder exercer a sua função primordial de garantir a segurança dos cidadãos o direito penal só pode ser público (e daí a existência de penas de prisão, de medidas de coacção, etc…)
2) Se o Filipe Abrantes reconhece que o crime de homicídio com tortura é mais grave, então reconhece que juízos sobre o grau de ilicitude do comportamento do criminoso contribuem para a medida da pena. O que significa que há um juízo da sociedade (através dos tribunais e em conformidade com a lei) que tem por objecto um conflito entre indivíduos. Ora com que legitimidade é que a sociedade pode opinar sobre conflitos entre particulares? Só se se entender que tendo por base a defesa de direitos que são pertença de pessoas concretas, o direito penal também tem de defender a sociedade no seu todo e tem de proteger bens que, tendo uma relevância individual, também têm uma relevância social evidente.
3) A lógica da prevenção e da ressocialização também têm um evidente sentido. Repare-se: no seu exemplo, A furta um carro, mas fá-lo pela primeira vez, é um indivíduo bem inserido na sua comunidade, até frequenta a universidade, etc…se a lógica for retributiva, o lógico é que lhe seja aplicada uma pena de prisão proporcional à gravidade do crime, sem mais considerações. Mas se a lógica for a de tomar em conta razões de prevenção e de ressocialização, é evidente que é bem melhor a pena ser suspensa para que o A não saia da prisão muito pior do que quando entrou; assim como é melhor que permaneça inserido na sociedade é tenha capacidade para se sustentar do que sair da prisão sem qualquer dinheiro e sem qualquer possibilidade de o obter, porque ninguém contrata um ex-presidiário.
4) Isto tudo para mostrar que, a meu ver, o liberalismo não postula ideias tão simplistas como as de que tudo o que é consentido deve ser permitido ou de que tudo o que não é consentido deve ser retribuído, mas não prevenido. Nesse sentido, é bom que o Rui A. vá citando o Adam Smith e o Locke para que se perceba que o liberalismo não rejeita a cultura (entendida esta como conjunto de valores que a sociedade tem de fazer respeitar para que os indivíduos nela possam conviver pacificamente). É aí, então sim, que regressamos ao ponto inicial: não creio que uma sociedade – ou um Estado – que permita o canibalismo consentido pode assegurar a segurança dos indivíduos. Um Estado que o permita mina e dá cabo dos valores partilhados que, antes da polícia, asseguram essa mesma paz.
Caro Miguel Madeira,
[A questão não é comigo, mas…] se o filho tiver sofrido mais (é bastante possível num caso de tortura até à morte) que o peão atropelado, é de esperar que a indemnização será maior, porque os danos foram maiores – Miguel Madeira
Não necessariamente. Se, na sequência do acidente, o peão sofrer lesões gravíssimas, estiver internado durante meses ou anos sofrendo terrivelmente e só depois morrer, os danos são tendencialmente iguais nos dois exemplos. O que, de acordo com uma lógica puramente retributiva, obrigaria a que a mãe e o condutor fossem punidos da mesma forma.
O meu ponto é que se se entender os crimes como um atentado contra a vítima e nada mais é depois difícil justificar os raciocínios básicos que nós próprios fazemos (o de que a mãe deve ser punida com uma pena mais severa, o de que o grau de ilicitude deve contribuir para a medida da mesma, etc…). É por isso que o direito penal – atenta a função do Estado de garantir a segurança dos cidadãos – tem de ser bastante mais complexo do que aquilo que geralmente me parece resultar de alguns “chavões” liberais.