Caro João Luís,
Não obstante a simpatia do suposto «brilhantismo substantivo» do que escrevi sobre o direito natural, que não subscrevo, mas agradeço e devolvo, compreendo perfeitamente a desilusão que referes ao facto dos direitos naturais serem permanentemente desrespeitados pela soberania política. Acredito que se assentarmos, o que não me parece difícil, num conjunto minimalista de direitos naturais efectivamente universais e imutáveis, imanentes, por conseguinte, à natureza humana (e a natureza humana parece-me absolutamente objectiva e constante, mau grado o tempo e o espaço), não nos será impossível detectarmos o núcleo fundamental do direito natural nos direitos fundamentais de primeira geração consagrados pelo constitucionalismo liberal.
Questão diferente é a da universalização do respeito por esses diferentes. Aí, embora estando de acordo sobre as frequentes violações de que esses direitos são objecto, duvido que o facto de haver governos que desrespeitem a propriedade, a vida e a liberdade ponha em causa a identidade, a pertinência e a natureza intrinsecamente humana desses valores. Como bem sabes, o direito é, por definição susceptível de violação, seja pelos indivíduos, seja pelos seus governos. A coercibilidade das suas normas, característica que as distingue de todas as outras normas sociais, permite-lhes a imposição coactiva, se preciso for.
De resto, o argumento que utilizas pode ser facilmente invalidado pela realidade histórica. Basta olharmos para o que aconteceu na União Soviética, que implodiu por ter criado uma sociedade artificial, onde os valores naturais da humanidade se encontravam proibidos: a propriedade, a liberdade de expressão e de associação, o culto religioso, a segurança perante o poder, etc.
Todavia, reconheço que o valor intrínseco do direito natural é fundamentalmente metajurídico. Isto é, inspirador da ordem jurídica positiva. E, obviamente, limitador desse direito e da soberania (função que é, por excelência, a do liberalismo).
Recentrando-me então no liberalismo, parecer-me-ia bastante perigoso que os liberais não reclamem o respeito desse direito pelas ordens jurídicas estaduais, o que poderá levá-los à absoluta falta de critérios e à inteira sujeição à interpretação que o poder soberano fará, momento a momento, da vontade geral. Ora, dizem os liberais, nenhuma vontade poderá sobrepor-se aos direitos fundamentais dos indivíduos. Mesmo a dos próprios, em certos casos, deverá ser limitada por atentar contra esses mesmíssimos direitos e contra, em último caso, a ordem natural das coisas, que os liberais também é suposto respeitarem.
Numa sociedade liberal, não haverá, por isso, lugar a «sacrifícios humanos» consentidos, ou a «sacrifícios» rituais das «mais belas filhas» de pais apaziguadores das divindades, mesmo que as ditas não se importem muito com o sacrifício. Em qualquer dos casos, é de homicídios, consentidos ou não, de que falamos. Para além da selvajaria em si mesma dessas práticas, imprópria de sociedades de homens livres e responsáveis. Até porque, com as ditas «mais belas filhas» (e eu atrever-me-ia a dizer, mesmo com algumas das menos belas) há coisas bem mais interessantes a fazer, que não só apaziguam os deuses, como as próprias (que eram, coitadas, esmagadoramente virgens, requisito fundamental para o sacrifício, como sabes). Já quanto aos pais delas é que não garanto nada. É que os há de todas as espécies…
Abç.,
«Numa sociedade liberal, não haverá, por isso, lugar a «sacrifícios humanos» consentidos, ou a «sacrifícios» rituais das «mais belas filhas» de pais apaziguadores das divindades, mesmo que as ditas não se importem muito com o sacrifício.»
O que é que entende por “sacrifícios humanos consentidos”? Ou homicídios consentidos? Se eu (imagine-se) por motivos religiosos me oferecer para ser queimado por um sacerdote num ritual, há razão para mo impedirem? Ou se eu quiser ser comido por alguém? Isso deve ser tolerado numa sociedade livre? Se não, porquê?
Podia esclarecer? Obrigado.
“o facto de haver governos que desrespeitem a propriedade, a vida e a liberdade ponha em causa a identidade, a pertinência e a natureza intrinsecamente humana desses valores. ”
Confesso que estranho sempre tanto cuidado nas palavras.
Na verdade é o facto de ser inerento ao Estado a capacidade de violar os direitos naturais de forma impune e unilateral que conduz ao cepticismo liberal contra a sua acção, mesmo que justificada com a melhor das intenções e mesmo que (aparentemente) legitimada por uma grnade maioria.
O que é que entende por “sacrifícios humanos consentidos”? Ou homicídios consentidos? Se eu (imagine-se) por motivos religiosos me oferecer para ser queimado por um sacerdote num ritual, há razão para mo impedirem? Ou se eu quiser ser comido por alguém? Isso deve ser tolerado numa sociedade livre? Se não, porquê? – Filipe Abrantes
Não há razão para o proibírem e tanto não há que o suicídio não é crime (já foi).
Defendo uma posição semelhante à do autor do post. No direito distinguem-se direitos subjectivos, de que seriam exemplo direitos de personalidade como a vida, a liberdade ou a integridade física, e os bens jurídicos que também podem incluir os mesmos direitos, mas já noutra perspectiva. A distinção é importante: refere-se tais bens como “direitos subjectivos” quando se pretende salientar a sua pertença a um indivíduo; menciona-se tais direitos como “bens” quando se quer salientar a sua importância cultural, transcendente em relação à sua dimensão meramente individual. Pergunta-se, pois, se uma sociedade liberal pode prescindir desta segunda perspectiva, limitando-se a defender a vida ou a integridade física ou mesmo a liberdade quando haja consentimento da vítima. A resposta do Rui A. parece ser “não” e o bom senso, mais do que qualquer teoria, leva-me a perfilhar a mesma tese. É o que justifica, aliás, que o direito penal seja um direito público. Os crimes não atentam apenas contra bens individuais, mas contra a própria comunidade. Se assim não fosse dificilmente se justificaria por uma lógica de compensação da vítima que pudessem ser aplicadas sanções de natureza pública como a pena de prisão. Desse ponto de vista, há que ter um pouco de cuidado com defesas meramente teóricas de proposições abstractas: delas se retira contrafactuais que evidenciam algum erro na defesa de teses, que dentro de uma teoria política, aparentemente passam inquestionadas.
Correcção:
“limitando-se a defender a vida ou a integridade física ou mesmo a liberdade quando haja consentimento da vítima.”
Obviamente, falta um “não” antes do “haja”.
José Barros,
Se há consentimento por parte do “sacrificado” ou “comido”, qual é a relevância do que a comunidade (uma maioria dentro de uma comunidade, como sempre) acha ou não aceitável (direito público)? Você aplica isso à eutanásia também? O problema desse argumento é que dá praticamente um poder ilimitado e arbitrário ao “direito público”.
«Os crimes não atentam apenas contra bens individuais, mas contra a própria comunidade. Se assim não fosse dificilmente se justificaria por uma lógica de compensação da vítima que pudessem ser aplicadas sanções de natureza pública como a pena de prisão. Desse ponto de vista, há que ter um pouco de cuidado com defesas meramente teóricas de proposições abstractas»
Eu penso que isto é a típica “defesa teórica de uma proposição abstracta”: dizer que os crimes podem atentar contra a comunidade. Alguém dispor da sua vida (corpo) para rituais no âmbito privado é um crime contra a sociedade em que sentido?
Você acha que é bom senso dizer que a maioria deve proibir rituais extremistas (voluntários), então vai ter de achar de bom senso que se persiga seitas extremistas, satanismo e outras minorias extremistas (como canibalistas, que devem representar, pelas minhas contas, 0.000001% da população).
Para mim, bom senso é concluir que as pessoas são livres desde que não atinjam terceiros. Canibalismo em privado? Eutanásia? Há problemas?
“É o que justifica, aliás, que o direito penal seja um direito público. Os crimes não atentam apenas contra bens individuais, mas contra a própria comunidade. ”
Pois, isso é o que levou a que o direito penal seja mais um exercício de poder do que um de fazer justiça.
O primeiro dever, antes de considerações abstractas comunitárias, é a restituição, e por isso um criminoso deve sempre ser colocado na situação de poder restituir ou indemnizar, não o de passar o tempo da prisão e programs de reabilitação à custa dos impostos do lesado.
O papel do soberano feudal, que tinha uma existência algo contratualista, era o de:
– pagar a restituição à vitima
– perseguir o criminoso e extrair deste a restituição
Servindo assim de “Seguro” da população no seu feudo.
Voltamos à dicotomia “Vontade Geral” versus Direito Natural”.
Quem decide se os tais valores comunitários se sobrepóem a direitos naturais (o da restituição)? Vota-se?
Bem sim. Eu já tentei reconciliar a Vontade Geral com o direito natural.
Se partirmos do principio que os participantes numa comunidade o fazem de forma voluntária e com unanimidade acordam num dado processo colectivo de decisão, a Vontade Geral não é masi do que o exercício de um direito natural.
Claro que para isto ser verdade, apenas o direito de secessão da comunidade poder servir de prova que um participa nessa vontade geral por exercicio do seu direito natural.
E assim existe esse direito de secessão, até um regime comunista é legitimo.
Portanto, diganos assim, façam o que quiser, construam as teorias abstractas-colectivas que quiserem, mas deiem-me o direito de secessão. Se não o fizerem serão tão totalitários como qualquer totalitarismo.
PS: e assim, creio, como que demonstro que os natural-rights-anarchists no fim é que têm razão.
“compreendo perfeitamente a desilusão que referes ao facto dos direitos naturais serem permanentemente desrespeitados pela soberania política.”
A replica é subtil, mas não era ao desrespeito pelos estados que eu me referia. Referia-me sim a quando a generalidade de um povo aceitar esse suposto “desrespeito” não como desrespeito mas, pelo contrário, como a própria norma moral a defender.
“Acredito que se assentarmos, o que não me parece difícil, num conjunto minimalista de direitos naturais efectivamente universais e imutáveis”
A mim, em contrapartida, parece-me sim uma tarefa de grande monta, e eu diria até o próprio busílis da questão e um dos símbolos de fraqueza da tese do direito natural.
“De resto, o argumento que utilizas pode ser facilmente invalidado pela realidade histórica. Basta olharmos para o que aconteceu na União Soviética, que implodiu por ter criado uma sociedade artificial, onde os valores naturais da humanidade se encontravam proibidos: a propriedade, a liberdade de expressão e de associação, o culto religioso, a segurança perante o poder, etc.”
Acho que é possível em relação a esse caso ter-se uma análise bem mais pragmática: a de que os soviéticos chegaram a um ponto em que concluíram que as concessões que tinham feito até esse momento em relação à sua vontade individual somadas aos benefícios que colheram delas se tornou inferior aos custos da mudança e associado ao risco de a situação persistir.
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“Acho que é possível em relação a esse caso ter-se uma análise bem mais pragmática: a de que os soviéticos chegaram a um ponto em que concluíram que as concessões que tinham feito até esse momento em relação à sua vontade individual somadas aos benefícios que colheram delas se tornou inferior aos custos da mudança e associado ao risco de a situação persistir.”
Mesmo um regime comunista tem de ter por base uma espécie de maioria silenciosa que não está disposta a revoltar-se.
E este é um bom argumento contra o intervencionismo externo agressivo de oposição aos regimes dos outros.
“E este é um bom argumento contra o intervencionismo externo agressivo de oposição aos regimes dos outros.”
Totalmente de acordo. 😉