Indignações Selectivas
Há um estranho costume nesta nossa comunidade política de não se indignar com actos ou omissões mas tão simplesmente com quem as praticou. Importa, em cada caso, e antes de soltar a verve, identificar quem foi o autor da coisa. Se é gente de bem, daquelas de quem se gosta, há que desvalorizar, que é uma calúnia e uma manipulação. Mas se calha ser daquelas pessoas de quem se convencionou não gostar, ai que o rei vai nu e estamos perante a maior ameaça ao regime democrático desde o 25 de Abril.
Estas chamadas indignações selectivas, normalmente camufladas por entre argumentações jurídicas habilitantes, são já hoje assumidas. Quantas pessoas não disseram já, preto no branco, que se acaso fosse Santana Lopes a ter a licenciatura em causa, tudo seria diferente e estaríamos eventualmente perante uma crise política de proporções inéditas em Portugal. E dizem-no com naturalidade, e sem se rirem da sua própria imbecilidade: é que Santana é Santana e Sócrates é Sócrates.
Esta desgraçada forma de encarar a coisa pública em Portugal, para além de desviar os factos políticos para a esfera dos ódios pessoais, coisa que não se recomenda, tem como consequência o incentivo à cultura da aparência política.
Mais do que fazer bem e depressa, interessa criar uma rede de cumplicidades que permita transparecer uma boa imagem, de forma a acautelar eventuais deslizes. E temos muitos casos, espalhados pelo nosso espectro político, de gente que alcançou uma aura de credibilidade e competência que, ainda que a mesma exista, assenta apenas na aparência. E é fácil percebê-lo, de cada vez que um jornalista escreve que X tem feito um trabalho notável na vereação Y, ou que X tem assumido uma trabalho sério à frente da pasta Y, sem nunca concretizar depois, ao certo, em que consiste tal trabalho.
São essas figuras que vão aparecendo, tributárias da admiração e da comoção, que podem dar-se ao luxo de fazer e dizer o que lhes der na real gana, que há sempre quem se indigne quando elas são postas em causa.
Independentemente do que vier a apurar-se no que respeita à licenciatura de José Sócrates, uma coisa salta à vista e entra pelos olhos dentro, trata-se de um assunto de evidente interesse público, como o próprio reconheceu. Mais do que isso, trata-se agora, que José Sócrates sobre ele pronunciou ou se explicou, um assunto em que pode estar em causa a palavra do próprio.
Podem, por isso, os indignados selectivos vir com as tretas do costume, da cabala e da manipulação. Enquanto não contraditarem e responderem a factos ao invés de defender honras e denunciar castelos no ar, os meus sacos serão rotos e na minha freguesia é que não pregam mesmo.
“Mais do que fazer bem e depressa, interessa criar uma rede de cumplicidades que permita transparecer uma boa imagem, de forma a acautelar eventuais deslizes.”
Parece que sim…
Touché.