Gulag

Têm sido muitos os habituais apoiantes de uma economia de mercado a defender a nacionalização da AIG como, no mínimo, um mal necessário. A defesa da intervenção baseia-se em dois argumentos principais: a falência da AIG levaria a uma perda de confiança no sistema financeiro e consequente aumento dos custos de financiamento, e o efeito multiplicador desta falência poderia resultar em perdas bem superiores. Ambas as conclusões me parecem correctas. O que não é certo é que é que se possa utilizar esses argumentos para defender a nacionalização da AIG.

É verdade que a falência de grandes instituições financeiras levará à perda de confiança nos mercados e um aumento dos custos de financiamento no futuro. Mas, se os factores que estiveram na origem de toda a crise do subprime foram exactamente os baixos custos de financiamento e a fraca análise de risco nos mercados financeiros, não podemos ver nesta correcção um mal em si. Antes pelo contrário, é uma prova de que os mecanismos auto-reguladores do mercado funcionam. Se a subavaliação de vários tipos de risco  causou a crise, é normal que da crise resulte um aumento da percepção de risco.

O argumento de que, por via do efeito multiplicador, as perdas totais para a sociedade são muito superiores ao valor do bail-out, apesar de verdadeiro, cai no erro muito Keynesiano de ignorar que também existe um efeito multiplicador (negativo), do lado de quem financia o bail-out: os contribuintes. Por outras palavras, pese embora os efeitos dda falência da AIG fossem mais visíveis, não está provado que a perda de 80bn de dólares pelos stakeholders da AIG tenha um efeito multiplicador na economia superior à perda de igual montante pelos contribuintes, financiadores do bail-out. Existe ainda a agravante de no segundo caso, quem suporta primariamente o custo sejam aqueles que não correram o risco e, portanto, não teriam obtido o retorno caso as coisas tivessem corrido bem.

Mas mais importante de tudo, há nesta posição uma violação de princípio do mercado que coloca em causa a defesa do capitalismo em si: a responsabilidade individual. Como alguma esquerda defende, não é justo que sejam privados a obter retornos quando as coisas correm bem e o público a pagar as prejuízos. Se a nacionalização da AIG é um “mal necessário”, então o melhor, e mais justo, é desde já nacionalizar todas as empresas que são demasido grandes ou importantes para falharem, mesmo, e principalmente, aqueles que obtenham lucros actualmente. E todos sabemos onde esta lógica acaba.

15 pensamentos sobre “Gulag

  1. António Carlos

    A sua argumentação está correcta mas, quanto a mim, esquece uma questão. O contexto social, em particular numa democracia.
    A falência da AIG, mais do que penalizar investidores, depositantes ou segurados, poderia colocar em causa (imagino eu que não sou economista) uma larga parte do sistema privado de pensões.
    Ninguém tem pena de investidores (gralmente são vistos como tipos gordos a fumar charutos em clubes privados), os depósitos da banca comercial imagino que estão geralmente assegurados, mas só a ideia de que milhões de pensionistas, a grande maioria já fora do mercado de trabalho, serem condenados a um resto de vida miserável é inaceitável (socialmente, pela população) e dificilmente os seus efeitos seriam controláveis em democracia.
    Numa altura em que visitava Inglaterra à alguns anos lembro-me da falência de um esquema privado de gestão de pensões (não me lembro dos detalhes) e de ver a pressão mediática e social que algumas centenas de pensionistas causaram na opinião pública e no governo. Se não me engano, no final, o governo acabou por garantir qualquer forma de compensação. Imagine agora o mesmo efeito em larga (larguissima) escala!
    Repare que não é muito relevante(?) discutir agora, em teoria se isso seria justo, benéfico, … Na prática era o que aconteceria. É um facto.
    O que para mim conduz a uma conclusão. É possível (certamente) defender esquemas de gestão de pensões privados mas, para que essa defesa seja séria, não se deve escamotear o facto de que de um momento para o outro todas as poupanças de uma vida, aliadas às perspectivas de uma velhice “confortável” (o que é particularmente dramático para quem já está fora do mercado de trabalho) podem perder-se. O problema é que mesmo que essa consequência seja aceite em abstracto pela população, no momento em que ocorrer “em concreto” e, principalmente, se ocorrer em larga escala todas as “aceitações abstractas” anteriores serão negadas face à “monstruosidade real” das perspectivas para os pensionistas.
    É esta questão que a análise dos Sistemas Públicos de SS esquece: por muito ineficientes ou privadores da liberdade de escolha que sejam, os Sistemas Públicos garantem uma não implosão instantânea. Face a uma insustentabilidade (que não tenho dúvidas irá ocorrer) o Estado tem sempre a possibilidade de “ajustar” (inevitavelmente para baixo) os montantes a receber adequando-os à produtividade do momento. Este ajuste, apesar de gerar alguma contestação, como ocorreu recentemente em Portugal, não tem consequências sociais semelhantes a um ajuste imediato e brutal (como a falência da AIG). Volto a repetir, não tenho dúvidas que no longo-médio prazo, esse ajuste até talvez fosse benéfico para todos mas era socialmente incomportável no curto prazo.

  2. António Carlos

    Para concretizar melhor o meu comentário anterior.
    Com a falência do Lehman Brothers vai haver certamente investidores a perder muito dinheiro e empregados (milhares?) no desemprego (imagino que não haverá depositantes). Mas já viu manifestações nas ruas? Os desempregados podem sempre ter a perspectiva de voltar a ter emprego. Com os investidores a questão é ainda mais interessante. Muitos deles poderão até ser reformados (com montantes equivalentes a uma pensão). Mas a perspectiva pública sobre o seu destino é diferente da perspectiva com que encarariam a perda de uma pensão consequência da falência do AIG. Basta imaginar “veteranos de guerra, que contribuíram com o seu sangue para a segurança do país” a perderem as suas pensões, passarem a viver na miséria e acamparem em frente à casa Branca (esquecendo mesmo que estamos em ano de eleições).
    Já agora, porque é que o Estado garante (directamente ou através de regulação?) os montantes depositados na banca comercial e não havia de garantir os fundos de pensões, pensa o cidadão comum?

  3. Brandir o espectro do Gulag, é não ter noção do ridículo.
    O resto é do domínio do Dever Ser. Mas a realidade, essa, é feita de impurezas. Isto é válido para os marxistas escolásticos e para os nossos liberais de algibeira, cujas posições são simétricas.

  4. Pedro

    Concordo com o seu post na quase totalidade.Penso q vai no sentido correcto.Mas há uma ideia q me levanta algumas dúvidas.Quando diz:

    “..não está provado que a perda de 80bn de dólares pelos stakeholders da AIG tenha um efeito multiplicador na economia superior à perda de igual montante pelos contribuintes..”

    Por perda dos contribuintes o que quer exatamente dizer!?
    Tenho visto esta ideia espalhada por vários blogs.
    Os Contribuintes perderam este dinheiro, pq?
    Foram aumentados impostos para recolher os 80bn!?
    Foi dinheiro de impostos desviados de outros fins para “ajudar” a AIG?!
    Libor3M+850bp parece-lhe “dinheiro dado”, ou “montante perdido”!?

    Obrigado

  5. Carlos Guimarães Pinto

    Caro António Carlos,

    A mesma lógica se aplica ao seu comentário: se acha que os esquemas de pensões privados não podem falhar, então não podem ser privados. Se é privado, tem que poder falhar.

    Caro Luís Marvão,
    Não consegui perceber em que é que os meus argumentos liberal-algibeiro-marxistas estão errados. De qualquer forma, obrigado pela nova designação. Não fosse o caro Luis e outros comentadores do género ficava sem saber quem sou. Agora ilumine-me, se possível com argumentos: em que é que o meu post foge à realidade?

  6. Pois… quem paga isto tudo mais as injecções de capital feitos a partir de nada (ou via xerox) somos nós através do aumento das taxas de juro… já repararam que a euribor ainda não parou de crescer? não são os bancos os que vão pagar no final… é toda e qualquer pessoa que tenha que recorrer a um crédito… e duvido muito que algum dos bancos centrais envolvidos venha a ter qualquer prejuízo… afinal cobram e muito por dinheiro que não vale o papel onde está impresso.

  7. PMA

    De mesmo sítio de onde todas as injecções de liquidez semanais vêem, q são efectuadas pelo FED e por todos os outros bancos centrais do mundo..

    Esta injecção de liquidez até tem um preço muito superior q as regulares ‘facilities’ utilizadas pelos bancos centrais..

    São essas facilities dinheiro dos contribuintes!?
    São impostos recolhidos para pagar essas ‘liquidity facilities’?!

  8. Pedro

    *O comentário assinado por PMA é, defacto a minha resposta/pergunta à pergunta do Carlos Guimarães Pinto (comentário 9)

  9. Carlos Guimarães Pinto

    Parece-me que o Pedro e o PMA acabaram de encontrar a galinha dos ovos de ouro.
    Só uma pergunta inocente: se o bail-out não tem custos porque é que o FED não faz o mesmo a todas as empresas prestes a falir? Afinal, não há qualquer custo em o fazer…

  10. Pedro

    Primeiro gostava de esclarecer. O Pedro e o PMA são uma e uma só possoa.EU.
    Peço desculpa pela confusão (isto de mudar o nome n dá com nada!)

    O bail-out tem custos, mas n me respondeu a nenhuma pergunta.
    As facilities não são tb meios de tentar evitar a falência dos bancos?
    Q custos têem?
    Todos os Bancos centrais as fazem.Tb nós, contribuintes europeus, estamos a pagar essas ajudas, mesmo q nenhuma banco europeu tenha sido ‘nacionalizado’ (tirando o banco inglês)?

    Mesmo sem me ter respondido a nenhuma pergunta, não resisto a lhe fazer outra.
    O q acha da noticia de um Resolution Trust Corporation 2?
    Não vê, em nenhuma acção ‘estatal’ um custo inferior para a economia do q a falência do sistema financeiro?

    Compreendo a lmitação de tempo q o impede de responder a todos os ‘comentaristas’ de serviço, por isso n lhe levo a mal se, mais uma vez, me ignorar, pois tb n duvido q venha a escrever(se já n o fez) sobre esta nova acção do tresury americano.

    mas desde já obrigado..

    Pedro

  11. Carlos Guimarães Pinto

    “As facilities não são tb meios de tentar evitar a falência dos bancos?”
    São. So what?
    Esta operação tem contornos diferentes. O FED realizou um empréstimo que nenhum privado ou consórcio de entidades privadas faria, simplesmente porque o risco é demasiado elevado. É tanto diferente que o FED até passou a gerir a seguradora, detendo agora 80% do capital da sociedade. E, sim, dependendo de como os fundos forem gerados, os contribuintes vão pagar este bail-out através dos impostos directos ou do imposto inflacionário.

    “Não vê, em nenhuma acção ‘estatal’ um custo inferior para a economia do q a falência do sistema financeiro?”

    Simplifiquemos as coisas: imagine que há 80 bn de dólares para gastar. Existem duas opções: ou os contribuintes americanos gastam o dinheiro conforme as suas preferências individuais (comprando carros, casas, alface, iogurtes, prostitutas, salvar a AIG, etc)ou o estado resolve tomar esse dinheiro e aplicá-lo da forma que uma dezena de pessoas acha que é melhor para todos. Qual é a opção que para si, sinalizará melhor ao mercado o que produzir nos próximos anos? A falência da AIG e consequente perda em cadeia, não é mais importante que a falência de mercearias, stands de automóveis e bordeis pelos EUA que irão resultar de haver menos dinheiro para ser gasto.
    É um erro comum não entender o custo que têm as intervenções do estado na economia. Mas que o que é certo é que têm.

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